Um Pierrot apaixonado, que vivia só cantando, entra no salão mal iluminado, de decoração duvidosa que mistura palmeiras, tucanos e Momos de bochechas rosadas. Logo avista amigos de outros carnavais: Zezé e sua distinta cabeleira dançava sozinho como de costume, com seu olhar bêbado também de costume. Pierrot já não se questionava mais se ele é ou não é, mas cortar o cabelo dele não seria nada mal... Do outro lado do salão ele avista o Vovô, que com a poupança acumulada pela falta de sustentação de sua
pipa, era o alvo perfeito para acabar com a dureza de nosso Pierrot:
- Ei você aí, me dá um dinheiro aí!
- Olha, não é que chegou o mais ilustre membro da turma do funil!
- Pois é, Vovô... Eu nunca durmo no ponto...
- E eles que ficam tontos, né? Toma lá, leva cinquentão, você acha que dá?
Se dava ou não dava era coisa pra se ver mais tarde, mas que era um bom começo, isso sim. Tempos difíceis de falência aqueles que passava em Aguinhas, cidade maravilhosa e cheia de encantos mil, que abrigara mais de centenas de carnavais antes da mudança para terras distantes. Mas que calor. Não era nenhum deserto do Saara, mas Pierrot precisou por várias vezes parar, parar para encher a cara, tentando aliviar o suor em bicas que insistia em tentar roubar sua maquiagem. Numa dessas o dinheiro ia embora junto com as caipirinhas que tomava e os outros drinques que oferecia a cada mulher que encostava ao balcão, pensando que cada uma se tratava de uma Colombina em especial. Na terceira, vestida de Mulher Maravilha, deu asas ao papinho cinco estrelas:
-Sabe, recordar é viver... Eu ontem sonhei com você!
- Recordar? Se liga, nem te conheço ...
Nunca tinha sido bom de xaveco e sempre que tentava lançava uma frase desse tipo, que logo o tirava da corrida.
- Pois é, mas seria bom... Quem sabe sabe, conhece bem, meu amor, como é gostoso gostar de alguém...
- Eu, hein. Acho que você já tá é bêbado demais, não acha?
- Querida, eu bebo sem compromisso, com meu dinheiro e ninguém tem nada com isso...
Mais uma de suas investidas tinha ido embora, assim como metade da maquiagem e dois terços da grana do Vovô. Quanto riso, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão. Tá certo que não eram mais de mil, mas que havia pelo menos uns quinze palhaços, havia. Porém um deles chamava a atenção de nosso Pierrot, um Arlequim, que apoiado no outro extremo do balcão, chorava copiosamente no meio da multidão. Bailando ao som de intermináveis marchinhas, Pierrot logo alcança seu novo amigo:
- Que passa, meu amigo? Chorando uma hora dessas?
- É por causa dela...
Era ele, famoso violeiro do tempo de serenatas em bairros distantes. Por pouco não viraram verdadeiros amigos, tudo ficou só na lembrança e a distância impediu que qualquer coisa a não ser o respeito crescesse entre os dois. Soluçava e mal conseguia apontar para o outro lado do salão onde a mais bela do baile dançava rodeada por todos os outros palhaços, que cada um a sua vez tenatava em vão roubar o coração da moça. E era ela, a mulher que Pierrot tanto procurava, aquela que tinha mandado embora de sua vida há exatos 6 meses. Linda, morena, com covinhas nas bochechas e de um bailado que não podia confundir e, o pior, não podia esquecer. Eram dois palhaços chorando pelo amor da mesma mulher.
- Pára de chorar, meu amigo. Isso não te leva a lugar nenhum.
- Pois é, que atire a primeira pedra quem nunca sofreu por amor...
Vem chegando a madrugada, o sereno vem caindo. As músicas vão se repetindo, os bêbados caindo ainda mais rápido que o sereno. As luzes vão aumentando, a decoração vai se soltando das paredes, seu tempo está acabando. Deixa de lado o amigo, que de uma hora para outra tinha se transformado em seu algoz adversário. Pierrot agora caminha decididamente para o outro lado do salão, junto aos palhaços. É terça-feira, amanhã tudo volta ao normal, nada de fantasia bonita, só a carapuça que vestia a cada dia de cão que vivia nas ruas de Aguinhas. Era agora ou nunca mais, chegou chegando:
- Ei morena, deixa eu gostar de você!
- Você por aqui?
- Pois é, voltei. Tenho saudades, sabe?
Seu olhar tentava esconder a pontinha de alegria ao ver Pierrot, mas suas palavras censuravam seus olhos castanhos. Lacônica e irônica, como sempre ficava ao ser desagradada.
- Ah é? Que bom...
- E você, como tá?
Pierrot sempre fora mal nas tentativas de fazer fluir uma conversa sedutora. Preferia deixar essa parte a cargo do olhar, mas os olhos de sua Colombina eram fugidios como nunca antes tinham sido. Tentava falar mais de perto, colado ao ouvido dela, mas sutilmente tirava a cabeça ao ritmo das marchinhas.
- Tô bem, e você?
- Eu vô indo, sabe. É que...
Chega o violeiro, conhecido hoje como o Arlequim e, sem que Pierrot se apercebesse e pudesse se previnir, pega a Colombina pela mão a a carrega pelo salão. Não chora mais, apenas troca um sorriso luminoso de tão branco com sua amada. Ah, coração leviano, não sabes o que fez do meu. Logo ali, Vovô confirma as expectativas acerca de Zezé e acaricia sua cabeleira loira em um canto escuro. Já que a
pipa não sobe mais, é hora de arrumar outros jeitos de ser feliz. Até que formam um casalzinho legal. Mais uma caipirinha, só pra embalar a caminhada e Pierrot deixa o salão. Amanhã é quarta-feira de cinzas. Depois do meio dia não existe mais Pierrot, não existe mais Colombina, tudo será mais claro e silencioso. Pierrot deixa o baile, cantando alto dentro de sua cabeça... "Tristeza, por favor vá embora, minha alma se chora, está vendo meu fim".
Ouvindo: Banda Grande Rio - Coletânea de MarchinhasPS: Principalmente para o pessoal de Portugal, explico que esse texto foi inspirado e contém trechos de diversas marchinhas carnavalescas brasileiras. Essa é uma forma de me sentir mais perto do Carnaval brasileiro, que foi a primeira coisa que me fez sentir saudades verdadeiras de meu país.