Friday, October 21, 2011

Lembranças que eu tenho de lá

Te echo de menos, le digo al aire,
te busco, te pienso, te siento
diciendo que como tú no habrá nadie.
Y aquí te espero, con mi cajita de la vida,
cansada, a oscuras, con miedo
y este frío nadie me lo quita. 

(Bebe - Razones)


O plano é partir para Franca amanhã, logo pela manhã. A cidade ondei deixei para trás as primeiras caixinhas de vida. Lembranças, mesmo que muito vagas, ainda me comovem: o sotaque, o jeito inconfundível de dizer 'tií e fií' no lugar de tio e filho, a visão da mufa épica de Papa Tony's - o lugar onde comi meu primeiro dogão. Caio, Roberto, Roberta, Jonas, Douglas, Rogério, Tatiana, Mariana - aquela pra quem mandei as mais desesperadas e, literalmente, infantis cartas de amor - Pâmela, Vinícius, Ana Paula. Hoje escrevo seus nomes em um blog à medida em que me vêm à mente. Mas são só nomes que tenho na cabeça. Não há mais a lembrança de fato, tampouco o desejo de revê-los.


Rodrigo, tá aí um cara que me ensinou a rir da vida e de mim mesmo. Ria do rangido infernal que o FIAT 147 de meu pai fazia quando freava a fundo. Ria alto, zoava e fazia todos rirem. Filho de negociantes - seria um mercado que Dona Regina chefiava? Não sei, lembro mais dele chegando na pracinha e mandando, em alto e bom som, enquanto olhava pra mim: 'tã nã nã nã nã nã nã nã nã nã... Johhhhn Cabeeeeça'. Mesmo sendo endereçada a mim, era tão engraçado que eu mesmo ria do tosco apelido.


Outros apelidos vieram: Cabeção, Formiga do Planalto - o bairro francano, onde aparecem formigas que fazem deus questionar sua habilidade. Chernobil, da primeira vez que raspei a cabeça. Desse, não consegui rir. E outros mais vexatórios apareceram, mas sempre dei meu jeito de rir junto com o pessoal. Desde o tempo em que era o Ferruginha, em outra pracinha. Sempre apareciam os apelidos, principalmente na pracinha Santo Antônio, na Cidade Nova. E o mestre das alcunhas atendia pelo melhor vulgo da época: GT.


GT era o proto-marginal, daqueles que dão pinta desde adolescente de que não estão nesse mundo para contentar-se com regras. De família amalucada - um de seus parentes chamava-se Billy e sua irmã era a Cléa, conhecida por lá como Créia (era como a trissomia do 21 a incentivava a dizer seu nome). E muito aprendi com GT, como me virar na rua, como entrar nos lugares mesmo não sendo bem vindo e, o mais útil de todos - como saltar moitas enormes daqueles espinhos que o povo chama de 'coroa de cristo'. Na verdade, nunca fui muito bom nessas coisas de pular. Nem moita, nem muro. Por onde andaria Fabício, o GT?


Nessas andanças por ali, fiz uma dívida eterna com o meu melhor amigo, vizinho de frente da vó. Bocão, conhecido pela família como Diego, tinha a boca em que cabiam, contadinhas, 6 bolachas Maria. Gente boa até o último, tirando o fato de ele gostar de molhar o pão no café, que tomava de canecadas. Um dia, em meio às nossas reflexões pelas ruas da vizinhança, prometi inocente: 'ó, Bocão, um dia eu vou te dar um carro, vai ser um Opala'. Sempre que me lembro - esse é um dos quais o rosto de criança me vêm à mente - penso em saldar minha dívida. Foda vai ser achar um Opala, bege, igualzinho ao de seu tio Zeti. O Zeti tinha marca de bala e de facada na barriga, inchada de cachaça.


E a Edinéia? (nesse ponto, você leitor já deve estar cansado de rir de tantos nomes e apelidos, pois não?) A Edinéia era irmã do Érmisso, que fora batizado Emerson, filho do tiozinho que era lixeiro e que morava nos fundos da casa do bocão. Foi com a Edinéia que fui atrás de um Fusca bege, estacionado em frente à casa da vó e lasquei-lhe um beijo. Beijinho, curtinho, estralado, mas, que importa se tão furtivo? Foi o primeiro. 


Por onde anda essa gente? Ainda tenho parentes na cidade, mais de vinte, aliás. Um dia, depois de muitos anos sem aparecer por lá, fui ao mercado e queria comprar presunto, queijo e afins. Fui atendido por um jovem bastante cortês, de olhos azuis claros bastante familiares. Um reencontro dividido por um balcão resfriado, lá estava Douglas, o Tuca-Tuca, vizinho de muro da rua de baixo - eu morava num corte no morro com vista pra boa parte da cidade. 'André, você, quanto tempo, que tal, tudo bem, bem e você, faz tempo, né, e aí, como tá a família - a irmã dele salvou-me do meu primeiro desmaio, quando caí da goiabeira de sua casa e seu rosto de anjo salvador olhado de baixo pra cima ainda tá guardado em uma caixinha. 'Então é só isso, obrigado, obrigado a você, um dia a gente se fala, um abraço, pra tua mãe também'. 


Por onde anda Diego, o Bocão? Dias atrás, minha tia encontrou-o na rua, moleque crescido, sujeito homem, se virando com seu irmão de criação depois que a Gracinha morreu. Gracinha era a mãe do melhor amigo, carinhosa pra caralho, criou o Bocão sozinha e ainda pôs o Bruno embaixo da asa quando a Mariley morreu. Preciso apressar-me para achar um Opala, juntar um troco e saldar minha dívida. Pagaria o mundo para poder ver seu rosto agora, aquela boca onde hoje devem caber mais de uma dúzia de bolachas. Se não levar o Opala, ao menos recupero mais essa caixinha de minha vida que está perdida por aí. E refaço minha promessa, a qual um dia vou cumprir: um Opala bem bonito. Ferruginha e Bocão dando um rolê na Avenida.  Já pensou?


Ouvindo: Iron Maiden - The Sign of the Cross

Thursday, October 06, 2011

O sótão e suas lembranças

A primeira coisa que deve-se pensar quando de uma mudança: caso haja um sótão na casa, uma corda é necessária. Imprescindível, na verdade. Assim como abrir as janelas do sótão horas antes de ocupá-lo com a missão de retirar dali tudo o que não seja uma bagunça eterna; tipo de coisa que ali permanece até que a casa seja um monte de entulhos.

Nunca imaginei morar em uma casa com sótão. Qual seria a serventia de tal cômodo? É certo que não cheguei a morar ali, dormir todos os dias, pagar umas contas e tudo mais que faz com que você seja morador, não visita. Mas descobri que, dentre as utilidades de um sótão podemos citar: guardar caixas d'água e restos de construção - aqui queria entender por que tem-se dó de jogar todas as sobras na caçamba ou mesmo doá-las para quem daria mais serventia ao material.

Serve também para ser um local quente em dias de calor e gelado em dias frios. Caso o morador aprecie extremos, tá ali um cômodo aconchegante. E a principal função: estocar de maneira quase definitiva aquilo que você nunca mais vai usar. Exames médicos, diplomas da pré-escola, cadernos velhos, tudo cabe em um sótão quente e espaçoso.

Por serem as ideias fugidias, assim que pensares na corda - extremamente necessária para o caso de mudança em uma casa com sótão - lembra-te de pegá-la: a corda será a tua salvação. Com a corda em mãos, subo a escada estreita, daquelas de filme, que se escondem no teto e devem ser puxadas com uma elegante corrente. Na falta de uma corrente, improvisa-se bem com uma pá de pegar cinzas. Quente. Por que não ter aberto as janelas antes? Enquanto penso, o suor escorre pelo rosto. Era dia de fazer a barba. Sem tempo, ela só ajuda a aumentar a sensação de lugar mais quente do mundo.

Após breve análise, temos um diagnóstico: são 6 caixas grandes de papelão e a maior parte delas era caixa só no nome, não mais apropriadas para carregar qualquer coisa. Entre livros, radiografias, eletrocardiogramas, cadernos, enfeites de natal, correspondências, lembranças, livros - de todos os tipos, diga-se, desde a Teoria do Basketball ao Código da Vinci - encontro muitas traças, que saem apressadas e sem saber pra onde ir quando veem luz depois de tanto tempo.

As coisas ali não tem mais dono. São da casa. São do sótão, na verdade. Os moradores já retiraram todas as suas coisas de dentro da casa. Pelo menos é assim em suas cabeças. Suor constante, que, de tão constante, não me incomoda mais quando escorre pelo rosto. A corda. Ainda bem que eu achei essa corda, viu? Quando criança sempre gostei de nós, dos quadros com todos os tipos de nós do mundo, mas nunca consegui reproduzir nada além do nó cego. É hora de aprender, na marra mesmo. Enrola daqui, aperta de lá, tudo muito seguro.

Ajuda aí embaixo! Pronto. Devolve a corda. Olha esse caderno, olha esse álbum de fotografias. Vejo coisas que tem valor pra mim no meio da bagunça toda. Roubo do sótão alguns de seus tesouros. São meus novamente, alimentarei as minhas próprias traças com eles, ocuparei outros sótãos e caixas velhas. A sacola - outra ferramenta essencial em uma mudança é uma sacola resistente com boas alças - sobe de volta ao sótão. Quem diabos guarda um raio X de 1998? Tem coisas que só quem tem um sótão em casa sabe explicar.

Ouvindo: AC/DC - Shake a Leg

Thursday, August 11, 2011

O desfalcado

-  E aí, Rick, bora jogar bola?
- Pô, o Rick pode ir hoje não, tá desfalcado...
- Como assim? Tá doente? Que aconteceu com ele?
- Tá desfalcado hoje, vai dar pra ele ir jogar bola não...
- Pô, mas ele tá aí? Tá machucado?
- Vai dar pra ele hoje não. Mas somos de boa, a gente é do bem. A gente vai devolver tudo as coisas pra ele... Avisa isso pro Rick quando cê conseguir falar com ele, firmeza?

Difícil falar com assaltantes ao telefone, ainda mas quando finge-se não saber de nada.

Tu-tu-tu-tu.... Desliga o telefone. Voltemos 15 minutos na cena. Toca a campainha. De bermuda, meião erguido e tênis de jogar bola, espera Rick na sala de casa. Cadê a chave? Deve estar lá em cima. "Peraí, Rick, tô indo". Sobe a escadaria, nada de chave. Confere o bolso do casaco, tá lá. Desce de novo, apressado, rumo à porta. Faz menção de abrir, mas ouve a voz de Rick e concentra-se no diálogo:

- Seguinte, mano, dá tudo aí. Dá o celular. Dá a carteira.

- Cadê o carro, mano?

São dois. Calmos. Imagina-os discretos, de jaqueta sintética e tênis de corrida. Imagina porque não pode vê-los, o portão de madeira só permite que o assalto fosse testemunhado de ouvido. A tensão aumenta. Abrir a porta? Gritar? Pegar o pedaço de pau ao alcance da mão esquerda e ver o que o espera lá fora? Gritar? Correr? Chamar o Rick, como quem não quer nada? Aí os caras entram em casa... Dão um tiro no Rick. Dão um tiro em mim. Ou saem correndo, assutados. Bora pegar esse pau e por esses maluco pra correr... Todos os pensamentos passam por sua cabeça em exatos 15 segundo, tempo para o diálogo que ouve à porta de casa.

- Cadê o dinheiro, mano?
- Tem nada não, só os documentos, tá aí, ó.
- E o carro, cadê o carro?
- Ta aí a chave.
- Ô chega aí no carro com nós então, chega, chega.

São as últimas palavras que ouve. Levaram Rick pra um passeio, essa certeza tomava conta de sua cabeça. O silêncio dá mais peso às pernas, que tremem discretamente. Suas pernas sempre tremem em situações extremas. Telefone. Polícia. 190 ao seu dispor. Mas você está vendo ou ouvindo? Ouvindo (que diferença faz?). Tudo bem, vamos mandar averiguar. 40 minutos depois chega a viatura, um cabo desce olhando-o com olhinhos de me come. Foda-se. Devia ter ido até a pizzaria ver se juntava uma turma de PMs na pilha de uma sobremesa. Telefone toca. Rick: cara, tô bem. Saí correndo. É, foi quando o cara da arma foi pro carro, vazei. Pois é, nem pensei em nada na hora. Só vazei. 


Sorte.

Ouvindo: Leo Canhoto e Robertinho - O Homem Mau

Thursday, August 04, 2011

A verdadeira história de Jesus de Nazaré - parte 2

Pouco depois de performar seus primeiros milagres - a transubstanciação e a multiplicação dos peixes - Jesus de Nazaré sentiu-se, pela primeira vez em sua vida, um cara verdadeiramente especial. Com a força de seu pensamento julgava poder fazer tudo o que imaginasse.

"E se eu tranformasse esse deserto em rio? Meter umas sombras, árvores com frutas e os caraio", pensa sozinho enquanto seus seguidores fazem sua função: andar atrás de Jesus arrastando suas túnicas em farrapos e aguardando as próximas mágicas que sairiam da cartola do nazareno. Como das primeiras vezes, bastou pensar e o milagre estava feito: sombra, árvores, frutas, bichos fofinhos e muita água corrente cercavam seu caminho.

E a vida de Jesus foi seguindo. Muito além dos 33 anos que sua biografia retratou, aliás. A cada dia que passava, Jê ficava mais orgulhoso de seus milagres. E a soberba não demorou brotar em seu coração.

- E aí, Jesus, firmeza, irmão? Sabe qualé, tava bem afim de arrumar uma namorada, jantar com ela e tal, sabe como é né?

- Pô, Iscariotes, você pede demais. E eu não sei como é porra nenhuma - apesar de todos seus poderes, Jesus nunca tinha experimentado da costela de Adão.

- Não rola mesmo, Jê? Quebra essa aí, vai?

- Toma logo, então, caralho!

Um harém coberto por uma tenda, decorado com as mais nobres sedas e louças e habitado por 11 virgens à espera de Iscariotes, brotou no meio do caminho.

- Aê, Jesus, cê é o cara mesmo, hein? Judas agradece e logo dá as costas ao mestre, erguendo a túnica enquanto corria para dentro da tenda.

- Fodam-se vocês. Vocês que se virem com esse pedição do diabo. Eu tô de boa, vou seguir meu caminho sozinho.

E assim foi. Deu as costas aos seus 13 asseclas e saiu perambulando sozinho por aí. Logo aborreceu-se com a solidão e passou a falar sozinhos, com os animais e mesmo com as pedras. Um coelho que passava ao seu lado ficou curioso enquanto Jesus falava com uma família de galinhas:

- Aê, Barba, tá doidão, rapaz? Falando com galinha?
- E você, branquelo, quer o que?
- Nada não, mano. Só que galinha é meio besta, ruim de ideia, né?
- Tô vendo. Já você é bem malandrão, né?
- Que é isso. Sou só um coelho qualquer falando com um tiozão cabeludo.
- Quer bater uma aposta comigo, coelhinho?
- Pô, até que é umas, né?
- Tá vendo aqueles ovos ali?
- Tô sim, que que tem os ovos?
- Tranformo essa porra toda em chocolate, duvida?
- Hahahahahahaha - o coelho se perde numa risada infinita.
- Tá rindo de que, otário? Transformo esses e todos os ovos que estão na face da Terra em chocolate, duvida?
- Duvido. Duvido pra caralho.
- Tá apostado?
- Tá sim, pode botar fé - o coelho responde confiante.
- Então toma, mané!

As galinhas saem de cima de seus ovos, esvoaçando com todas as suas forças. Não reconhecem seus ovos, agora pretos e grandes (todos os ovos foram tranformados em chocolate ao leite, nº 16). Fogem desesperadas, o que combina com o olhar embasbacado do coelho.

- Porra, como você fez isso, cara?
- Te interessa? Perdeu a aposta, imbecil. Agora você vai pagar.
- Pode crer. Como eu faço?
- Vai entregar ovo por ovo na casa da criançada. E vai fazer isso todos os anos, lá pelo fim de março, começo de abril. Quando você acabar de entregar tudo, me procura que eu te descolo mais ovos.
- Puta, me fodi.
- Pois é, coelho. Quis ser malandro, não quis? E ó: tô de olho no teu trampo, hein?

Saindo dali, Jesus avista um senhor gordo e barbudo, todo grisalho, vestindo uma estranha combinação vermelha e botas de couro. Não hesita em propor:

- Aê gordo, cola aí. Tá afim de uma aposta?

Ouvindo: Zebda - Motivés

Tuesday, August 02, 2011

Conto do vigário

-Olha, olha, minha gente, mas tem que ter o olho vivo! Quem quer jogar?

O homem veste roupas normais, além de ter uma cara normal. Salvo pelo olhar. É um olhar doce e convidativo, de quem tem certeza do que está fazendo. Tem uma banquinha de madeira leve, coberta por um pano roxo. Três copinhos e uma minúscula bolinha de madeira complementam seu ambiente de trabalho.

-Eu quero!

A velhota usa roupas sóbrias, tem os cabelos bem cortados e tingidos e um par de óculos cor de âmbar. Seu olhar é inocente e também muito convidativo.

-Então fica atenta, minha senhora, que o jogo vai começar. Atenção, atenção, não tire os olhos da bolinha.

Mexe que mexe e troca e troca os copinhos de lugar, numa velocidade incrível. Mesmo assim, para os mais vivos, a bolinha nunca some do lugar.

-Olha lá, vai parar, sabe onde tá a bolinha? Atenção, só mais um pouquinho, pronto.

Levanta as mãos e a cabeça, agora olha em silêncio para a velha. Seu olhar é desafiador. Permanece calado.

-Na do meio!

A velha responde, mal contendo a empolgação de ganhar 50 contos assim, tão fácil. Tinha certeza absoluta: ganhara.

-Vamos lá, vamos ver... É isso mesmo! Bravo!

A velha comemora em silêncio, com um sorriso que deixa mais da metade de sua dentadura à mostra. Pega o dinheiro, guarda em sua carteira e permanece ali, ao lado da banca.

-Quem mais, quem quer jogar? Tão vendo como é fácil? Eu tô ficando velho, não consigo mexer com tanta velocidade. Quem joga comigo, vamos lá? Mas tem que ficar de olho na bolinha!

-Eu!

O passante tem cara de quem não é dali e tem o olhar confiante dos espertos. Passou os últimos 15 minutos observando o jogo e tinha certeza que seus olhos eram mais rápidos que a mão do mestre do jogo. Aposta 50 contos, assim como a velhinha.

-Então olho vivo, meu rapaz. Não tire os olhos da bolinha. Vamos lá!

Mexe, troca, gira. E fala sem parar.

-Atenção, vai parar. Tá de olho? Vou parar, olha lá, só mais um pouco, atenção...

Levanta o olhar desafiante em direção ao apostador e espera em silêncio.

-Tá na esquerda.

-Essa esquerda aqui?

-Essa mesmo.

O apostador fala convicto. Certeza de ter batido as mãos do banqueiro com a sagacidade de seu olhar. Levanta-se o copo. Não há bolinha. O homem vira-se e caminha cabisbaixo, imaginando que, talvez, tenha sido vítima de um golpe. "Mas até a velhinha ganhou", pensa. "Nossa, até a velha tava no esquema", lamenta-se em silêncio, com as mãos nos bolsos, mais vazios que outrora.

Ouvindo: Rappin' Hood - Rap do Bom

Thursday, June 30, 2011

A verdadeira história de Jesus de Nazaré

-Aê seus indecente, tão com sede, é? Se liga naquele tonel cheio d'água, eu vou transformar tudo em goró e vocês vão parar de me encher o saco.

Assim foi feito o primeiro milagre de Jesus de Nazaré, moço pobre, filho de um carpinteiro e de uma dona de casa. Cansado das eternas brigas entre Seu Zé e Dona Maria - Zé não acreditava que Jê era realmente seu filho - o jovem decide sair de casa, portando apenas uma túnica surrada.

A barba e o cabelo logo ficaram longos e descuidados. O estilo desapegado e a fala mansa atraíram os mais diversos seguidores, sempre a alguns poucos passos daquele que passaram a chamar de Mestre. Pedrão e Dedé, ambos pescadores, foram os primeiros a juntar-se ao nazareno. Largaram barcos e redes e passaram a andar por esse mundão afora arrastando túnicas e falando bobagens em praça pública.

A trupe de Jesus multiplicou-se e, um mês depois de ter deixado a periferia de Jerusálem, a turma já contabilizava 13 andarilhos, todos rotos e mal lavados. Apoiados nos xavecos do mestre, pouco necessitavam: fartavam-se em doações, esmolas e mesmo favores prestados pelas admiradoras desses homens de espírito livre. Porém, passando por um lugar ermo e sem habitantes para saciar a fome do bando, o desafio do trabalho atormentou as almas do povo de Jesus pela primeira vez. Judas, conhecido pelo apelido de Isca, lançou:

-Pô, Jê, dá um tempo aí nessa caminhada, mano. Tô com a maior sede aqui, faz dois dias que nós não come. Vai ter jeito de continuar assim não.

-Ô, irmão, dá um tempo pra mim. Cês só pedem, cara, tá louco.

Tiago, o menor da turma, aderiu à causa de Isca:

-É mesmo, Jesus, tá osso aqui. Mó sede, mó fome e cê não tem nenhum amigo pra descolar algum pra gente.

Foda-se. Bando de pau no cu, uns puta midá-midá do caralho. Que que eu fiz pra merecer isso, meu Deus? Além de ser filho de corno, virei pai de 12 marmanjo forgado. Dá força pra mim, Deus, me ajuda, senão eu mato um desses filhadaputa.


Depois de pensar isso, Jesus sente um arrepio. Julga ser a fome, ou a sede. De saco cheio, propõe que sigam caminhando até encontrarem abrigo. Lá resolveriam tudo. Cinco horas depois, encontram uma casa abandonada à beira de um lago. Na varanda, um grande tonel cheio d'água. E nada mais. Jesus propõe:

-André, arruma um jeito de pescar nesse lago. Ainda deve ter uns peixes por aí, a gente pode fazer na brasa.

-Tá me tirando, Jê? Todo mundo aí sentado e eu vou ficar no sol pescando? Tô de boa, viu?

Puta que me pariu. Puta mesmo, aliás, caralho, gente. Deus, me ajuda, não aguento mais, vou matar esse cara agora, na porrada mesmo. 

Jesus pensa mais uma vez e é tomado por uma fraqueza. Desmaia. Volta a si e vê a turma toda em volta de si. Levanta e diz, cheio de raiva:

-Aê seus indecente, tão com sede, é? Se liga naquele tonel cheio d'água, eu vou transformar tudo em goró e vocês vão parar de me encher o saco.


Palavras pronunciadas, milagre feito. Vinho tinto fino jorrava infinitamente do tonel. Judas Tadeu, conhecido como o Juta, é o primeiro a deitar-se debaixo da fonte de vinho e beber até soluçar. André vê a chance perfeita de fugir de vez da tarefa de pescar pra 13 barrigas esfomeadas. Chama Jesus de lado e começa, baixinho:

-Pô, Jê, moral você, hein? Tava pensando aí, será que não dava pra você dar um jeito no rango aí pra gente? Eu ainda tenho um pão muqueado aqui no bolso, mas falta uma carninha, né?

-Firmão, Dé. Mas busca pelo menos um peixe na lagoa pra eu tirar o modelo, vai?

Ouvindo: Michal Menert - In the Morning

Friday, May 20, 2011

Delegado Paixão

Delegado Paixão, conhecido por ser incorruptível e linha dura, pega mais um malfeitor em suas mãos. O bandido, novato que era, ainda não havia sequer ouvido falar nesse nome. Pouco teme, tem olhar confiante de quem quer continuar desafiando a lei, mesmo que preso em suas garras.

- Vai, dá o nome dos parceiros logo pra gente poder ir jantar e acabar com essa porra logo, vai.
- Vou dar nada não, não sei de nada.
- Olha, eu vou perguntar mais uma vez. E é a última, entendeu?
- Tendi.
- Quem tava contigo no assalto?
- Sei de nada não.

Paixão nunca perde o tom sereno. O investigador e o escrivão que o acompanham na sala de inquéritos sabem bem disso. E sabem que o delegado não estava contente com as respostas. E têm certeza que as respostas apareceriam, mais cedo ou mais tarde.

- Altair, busca lá meu alicate?

O alicate de cabo alaranjado e cabeça enferrujada é sua ferramenta preferida de trabalho. Desde que virou delega, Paixão não gostava de atirar, não gostava de algemar, não gostava de perseguir. Gostava de persuadir, convencer, argumentar. Era assim que ele eufemisava seu passatempo predileto: torturar.

- Tá na mão, chefe.
- Então abaixa a calça dele pra mim, Altair.

O olhar do meliante muda, o sorrisinho maroto some de seu rosto e ele começa a chacoalhar na cadeira.

- Cuidado, menino, você vai cair, vai machucar.

Paixão é sádico em seu olhar, em sua fala. E o bandido percebe isso na maciez da voz do delegado enquanto grita e protesta pelas calças e cuecas, que nesse momento, já estão no chão.

- Você é destro?
- Quê?
- Você escreve com qual mão, meninão?
- Com essa aqui - diz enquanto agita a mão direita atrás da cadeira.
- Essa aqui qual, não tô vendo.
- A mão que não é a do relógio.
- Então você é destro, moço. Aprendeu? Como é que fala então?
- Quê?
- Destro. Você tem problema no ouvido?
- Destro. Aprendi sim, aprendi.
- Então vamos lá, vamos começar pela direita.

Com calma, Delegado Paixão vai direto ao saco do assaltante. Não tem nojo, não vacila, nem nada. Pega um monte de pele em volta da bola direita, segura com firmeza com a ajuda das unhas - sempre com a manicure em dia - e, com a mão esquerda, aplica força na empunhadura do alicate. A ferramenta pressiona o escroto do malfeitor, que tem enormes dificuldades pra respirar.

- Tá passando mal, menino? - pergunta o delegado, ao mesmo tempo em que afrouxa um pouco a pegada do alicate.
- Para, para, para pelamordedeus!

Paixão adora quando pedem-lhe misericórdia. Adora porque ele nunca é misericordioso. Ele gosta do que faz, ama, aliás. Imediatamente após o primeiro 'para', Paixão aperta mais uma vez o alicate e sente o testículo esmigalhando na ponta de seu aparelho. O bandido desmaia, deixando a cabeça cair pra trás. Urina-se todo e só não se caga porque não tinha pronto.

"Tão vendo? Dois minutos atrás era o maior homem do mundo. Não sabia de nada, nem me dava confiança. Agora tá aí, todo desmaiado, todo mijado o filho de um corno. E ainda fala que é bandido". Paixão pensa falar com seus colegas, mas eles, de tanto terem ouvido a mesma coisa, mal prestam atenção. "Isso aqui é uma máquina de fazer justiça", dizia enquanto brandia o alicate no ar. O bandido começa a retomar consciência, balbuciando, babando e balançando a cabeça pendente.

- Acordou, menino? Achei que você ia tirar uma soneca mais comprida ...
- É... que... ahn...
- Tem alguma coisa pra me falar? - o delegado pergunta e ao mesmo tempo acaricia o rosto do preso com o alicate. O medo já dominou o criminoso, que treme e tenta desviar a cabeça.
-Vamos meu filho, conta logo pra gente poder ir comer uma pizza. Quem tava contigo na cena? - o delegado pergunta mais uma vez, com a mesma calma da primeira, enquanto abre e fecha o alicate diante dos olhos do interrogado.
- Era o Teco.... o Neco.... e o Brasa. Eram eles. Tão tudo fugido lá pra Zona Sul. Eu não sei de mais nada, eu não sei, eu não sei, pelamordedeus, eu não sei de nada, eu não sei.

Delegado Paixão já está de costas para Jelcimar de Souza, preso em flagrante portando um revólver calibre .765, sem numeração e com 7 projéteis deflagrados. Já havia conseguido o que queria e odiava ouvir reclamações sobre seu trabalho. O escrivão já sabe que vai sobrar pra ele, que hoje não é dia de pizza pro subalterno.

- Waldemar, tira o depoimento dele. Eu e o Altair vamos jantar. A gente te traz um pedaço de pizza, fica tranquilo.

Ouvindo: Tha Trickaz - Saigon to Paris

Tuesday, May 03, 2011

Nelson, o grosso

Chega alguém e bate à porta. O homem sai, encara a visita e dispara:

- Tá vendendo alguma coisa?

- Não.

- Tá pedindo alguma coisa?

- Não...

- Então vaza!

Esse é Nelson. Gordo, alto, de cabelos loiros e ensebados e olhos azuis. Nelson é grosso. Não é insensível, não é mal educado. Simplesmente, grosso.

Certa vez abordado por uma testemunha de Jeová que oferecia insistentemente um exemplar de "Despertai", Nelson gentilmente pergunta: "A senhora não teria um mapa do metrô, seria muito mais útil pra mim".

Mas nem sempre Nelson é educado em suas grosserias. Às vezes tem a sensibilidade de um elefante sem tromba.

- O jogo do Santos é hoje, Nelson?
- Sei lá, tenho cara de gandula pra saber dia de jogo?
- Credo, Nelson!
- Credo é o diabo que te carregue. Vai tomar no teu cu.

Nelson não usa relógio. Mesmo assim, quando em situação que o desagrada, olha pro pulso e diz lacônico: 'adoraria, mas já deu minha hora'.

Nelson, apesar de grosso, é um profissional. Diretor de criação em agência grande, salário gordo que paga carro de quem tem pau pequeno, viagens, vinhos e luxos. Sua última ideia encaminhada para a Heineken: um close de um menino de rua na Cracolândia fumando pedra na inconfundível lata verde. Os dizeres "Olha a minha marca. Chupa", complementariam a peça. Antes de juntar suas coisas e ir para o olho da rua, Nelson dispara:

- Bando de ignorantes do caralho, vocês não sabem de porra nenhuma.

Ouvindo: AC/DC - Little Lover

Friday, April 29, 2011

Sobre curuiz, calaboca, cuspião e outras histórias

-Calaboca! Pega!

Falava sempre baixinho, fechando minha mão, bem maior que a dela, colocando dentro a notinha suada de 5 reais.

-É pra você tomar um sorlvete.

Falava sorlvete, como os mais cultos falam Marlboro. Falava 'cuspião' no lugar de escorpião. Falava que a barata viria 'lember minha boca' caso não escovasse os dentes.

Do alto de seu metro e pouco, com as costas curvadas pela vida, encantadora pela fragilidade, encantadora pela força e alegria inocente de viver.

Pouco estudara, o suficiente para escrever um cartão por ano, em português quase inventado. Sempre do fundo do coração.

Lembra-se sempre, e quando digo sempre, quero dizer sempre mesmo, de quando dava banho em mim. "Agora eu não consigo nem levantar uma perna sua". E ria que ria, sempre um riso alegre e contido com a mão à frente da boca.

-Curuiz!

Nunca disse 'cruz credo' ou coisa assim. Só falava 'curuiz'. E eu amando tudo isso.

Dói, por isso é hermético. Curuiz se você for embora agora. Fica.

Ouvindo: Ratos de Porão - Medo de Morrer

Monday, April 25, 2011

A ocasião faz o ladrão

Há mais de quatro anos no ramo, Vicente nunca havia ouvido um tamanho absurdo, um plano tão frouxo, uma certeza tão amadora de sua parceira:

- É só dar um jeito na parede e tamo dentro. Se eu conseguir fazer a cerca atravessar a parede, tamo dentro. É mole, Vicente, ajuda eu nessa. Eu nunca te deixei na pior, cê sabe, né?

- E você acha que é fácil assim de entrar? Caralho, isso que você propõe é mágica. 'É só fazer a cerca atravessar a parede'. Só. Só. Só isso, né?

- É, seu bobo. Atravessou a parede, tamo dentro. Aí é só aproveitar. Vai ser lindo. Ajuda eu, vai!

- E quanto você acha que rola com a gente lá dentro, Marina?

- Ah, sei lá, uns 10 conto. Fora o material que a gente vai usar pra entrar, né?

- Ajudo porque sou parceiro. Mas não boto fé nisso aí não. Atravessar parede?

- Fica tranquilo que disso eu me encarrego. Só preciso de uma mão pra pegar no pesado. Meio a meio. Topa?

- Tô dentro. Meio a meio, hein?

- Hein!

Uma semana depois, Vicente e Marina tem todo o material à disposição, muito tempo e total privacidade para começarem os trabalhos. Ela toma as rédeas e mete a mão na massa. Esforço, olhares desconfiados. Vicente não bota a mínima fé. Marina sabe que é questão de tempo até a mágica acontecer. Diante do olhar incrédulo do comparsa, Marina faz a cerca atravessar a parede e declara aquela obra de arte terminada. Virariam lenda, teriam seu nome escrito na porta daquele prédio. Vicente reconhece e elogia a coragem de Marina. Não é qualquer um que inscreve uma escultura dessas em um concurso de artes.

- Falei que a gente ia estar dentro? Falei?
- Pois é.

Ouvindo: AC/DC - Soul Stripper

Friday, April 15, 2011

Pra não dizer que não falo de amor

Trancados naquele quarto, eram as únicas e últimas pessoas na Terra. Não que isso fosse fato, mas era a sensação. E para ambos, as sensações eram as guias e senhoras de suas vidas. Ali não importava quem era quem, quem faria o que, quem perderia, quem ganharia. Satisfazia-lhes o simples fato de estarem ali, naquele momento, juntos. Contemplar o teto. Sentir o calor que a janela fechada insiste em acumular ao redor deles. Rir das besteiras mais simples. Ver o sol começar a entrar pela fresta da janela. Compartilhar da mesma água, do mesmo ar. Bastavam-se, simplesmente.

Um está deitado ao lado do outro. A cabeça de um apóia-se no braço do outro. A alegria é tanta que um nem lembra do peso que a cabeça do outro faz em seu braço. Não importa. O bom mesmo é estar ali. Com a mão do mesmo braço que suporta a cabeça, um acaricia os cabelos do outro. E contempla a beleza concentrada injustamente em uma única pessoa. As pontas de seus dedos passeiam com carinho pelo seu corpo, perdem-se em desejo. Respira-se muito, ofega-se  mais ainda. O suor escorre, mas nem um nem outro se importa. Bastavam-se ali, naquela hora, daquele jeito. O mundo que fosse dar uma volta.

Os olhos de um conversam com os do outro. Dão pequenas voltas, passeiam pelo rosto. Os lábios, os dentes, o queixo, a pontinha do nariz, nada passa desapercebido, até que os olhos voltam a se encontrar. Fixos, brilhantes e espalhafatosos. Qualquer um que visse aquilo morderia-se de inveja. Mas não há ninguém que possa estar ali. São só os dois. E um infinito de sensações.

Com os olhos fixos nos olhos um do outro, cada um sente a respiração entrecortada, que sai mais pela boca que pelo nariz. Estão entregues ao desejo um do outro. Os lábios se tocam pela primeira vez e os arrepios ganham intensidade. O toque beira o insuportável para a mente e os olhos se fecham para concentrarem-se no que o corpo sente. As mãos, perdidas, passeiam, exploram, excitam. As unhas entram pra festa, mordidas. Sim, o amor é às vezes violento, mas nada que um beijo não cure depois. Bastavam-se e, por isso, não se importavam com nada. O fim da história fica pra depois: é muito embaraçoso falar de amor.

Ouvindo: Patrick Bruel - Les Amants de Saint Jean

Tuesday, April 12, 2011

Juventude inocente

- Caralho, demorou pra caralho, hein?
- Pô foi mal, tava tirando uma grana da velha.
- Vambora que tamo atrasado pra aula, caralho.

Estavam realmente atrasados. A uma hora dessas o prof. Clóvis estava na segunda lousa da arrastada aula de semiótica. Júlio e Cabeça queriam e precisavam atravessar a Zona Oeste inteira para poderem, ao menos, assinarem a lista.

- Pô Júlio, vamo dar um tirinho antes de ir nessa.
- Caralho, hein, Cabeça, teu apelido fala tudo mesmo. Segura aí.
- Valeu, Julião.

Cabeça estica duas carreiras na capa do caderno. Seu ar sereno está prestes a dar lugar a um verdadeiro lobisomem dominado pelo efeito da branca. Cheira. Passa o canudo. Júlio cheira, dá a partida e limpa o nariz.

- E aí, quanto você descolou?
- Peguei só 150 conto. Foi foda, a velha tava afim de ajudar a gente não, viu?
- Caralho, hein, Cabeça, cê já foi melhor nisso né?
- Pô, foi mal, aí. É o que eu consegui arrumar com a velhinha.

Júlio coloca cada vez mais peso no pedal do acelerador. O carro segue o ritmo de sua cabeça, que gira agora em 3ª marcha, bem esticada, com o torque ao máximo. Seus olhos estão mais acesos que qualquer farol.

- Acelera aí, Julião. Tem que chegar nessa aula logo, caralho.
- Qualé, Cabeça? Tá com pressa de escolinha agora?
- Pô, temo que chegar logo. Vambora aí, acelera essa porra aí.

Pé na tábua, manobras agressivas, sinais vermelhos. Nada retarda a pressa da dupla de playboys que dirige rumo à Pontifícia Universidade. Estão no fim do segundo ano, mas são amigos e parceiros desde o dia em que se viram.

- E a velha, tá tudo em cima com ela?
- Acho que agora tá.
- Como assim?
- É que..
- É que o que, caralho?

Júlio espuma pela boca, não olha mais o que tem à frente de seu carro. A cocaína é agora sua dominatrix e faz o que quer com sua mente. Cabeça fala, entre o pilhado e o indeciso:

- Tive que mandar ela pro caralho, Julião.
- Filho duma puta. Falei que não era pra matar, caralho.
- Pois é, Julião, foi mal. Bora chegar na facul logo, mermão.

A pressa aumenta.


Ouvindo: Bomba Stereo - Fuego

Monday, April 04, 2011

Teco, Neco e Brasa

Teco era o Teco desde os 13 anos dado seu hábito precoce de cheirar pó. 'Tá vendo aquele neguim, já tá dando vários teco'. 'Óia o maninho dos teco chegando'. Para 'e aí, Teco, firmeza?' foram alguns meses de cafungadas constantes e um crescente contato com a rapaziada do crime. Reinaldo seria pra sempre Teco.

Brasa era primo de Teco desde os 11 anos de idade, quando dona Dirce morreu atropelada pelo trem. A mãe de Teco pegou o menino, que ainda nauqela época era chamado de Ivan, e trouxe para dentro de casa, onde terminou sua criação como se ele fosse um primo próximo da família Silva. Ivan virou Brasa porque sempre foi o mais esquentado da casa.

Neco sempre foi Neco. Desde pivetinho era conhecido no morro do Querosene como Neco, irmão do Reinaldinho. Neco viu seu irmão virar o Teco mas não acompanhou a carreira do irmão no pó, mas sempre esteve ao lado da rapaziada do crime.

A história de Teco, Neco e Brasa começou a esquentar quando Brasa apareceu no sobrado com um revólver ainda quente, os olhos bem arregalados e uma expressão congelada na cara:


-Aí, rapazeada, fudeu, a casa caiu pra nóis. Vamo meter o pé que os homi devem tá colando logo mais aí.


- Qualé, Brasa? Qual foi, aí? 


- Acabei de estourar a cara de uma velha ali na avenida. Dei no pé, mas os homens vieram na cola.


- Tomanocú, caralho, e você correu pra casa, arrombado? - pergunta Teco com o nariz sujo de branco e os olhos mais arregalados do que nunca. Há três dias Teco não sai de casa e já torrou cinco 'dedão do Faustão', apelido carinhoso da bolsinha de 50 conto que ele tanto adora.


- Vamo vazá, já era - sugere Teco, sempre o mais racional da turma. 'Joga o ferro aí na vala e vamo sumir daqui, mano'.


Tarde demais. Sem bater na porta, a polícia entra seguindo o rastro de Brasa. 32 tiros depois, os três irmãos estão mortos no chão do barraco. Dona Cida terá uma terrível surpresa quando voltar pra casa.


Ouvindo: Asian Dub Foundation - Fortress Europe

Wednesday, March 23, 2011

Homem é homem, mulher é mulher...

Depois de passar o corredor da carceragem do 3º DP aos berros de 'me bota aqui não, dotor', Gilsinho foi atirado pra dentro da cela nº 2, com capacidade para 6 detentos, mas que na época suportava 22. Cientes do boato que o novato tinha caído no artigo 213, os habitantes da cela estavam mais que ouriçados. 'Aê, já era, esse aí é meu'. 'Passa o rabo dele pra cá'. 'Vai morrê, cuzão!'. Cocão, o dono da cela, tratou de acalmar a família. Com o indicador cruzado na frente dos lábios, fez shhhhhhh e todos calaram. 'Vem cá que eu quero te dar um papo, irmão'.

Gilsinho não para de tremer e está todo mijado, além de escoriações múltiplas pelo corpo, cara inchada e sangue seco e craquelado por toda a sua pele. Não se pode dizer que ele se acalma, mas o simples fato de todos obedecerem ao pedido do chefe da cela o deixa menos apavorado. Cocão dá a palavra, num tom relaxado e curioso:

- E aí, irmão, caiu no 213?
- Foi sim.
- Conta aí como foi...
- Pô, como assim. Tô arrependido, já apanhei que nem cavalo...
- Fala aí, irmão, como foi, rebentou a menina na piroca?
- Pois é...
- Então essa vai ser a gozada mais cara da tua vida, rapá. Aê Nelsinho, chega mais, busca a roupa dele lá!

Todos os detentos comemoram em alto e bom som.

Nelsinho é o braço direito de Cocão, odediente como um cão perdigueiro. A 'roupa' é uma calcinha de fio dental, costurada pelos travestis da cela 3, reforçada nas costuras, resistente e rendada. Parece que Gilsinho se mijou mais uma vez. Nelsinho encontra a calcinha embaixo de seu colchão e joga na mão do novato. 'Veste essa porra aí, mermão'.

Cordas de varal, camisinhas, lanternas, é inacreditável a quantidade e variedade de coisas que os detentos conseguem colecionar em seu cotidiano moroso. A família pendura Gilsinho na grade, os pés distantes um palmo do chão. Está preso de frente para as grades, amarrado pela frente da calcinha. 'Nelsinho, tem que lavar esse porra aí, mano'. A ordem de Cocão é cumprida em segundos com uma ou duas canecadas de água na linha da cintura do detento. 'Hoje vamo brincar de poste, moçada. Quem vai primeiro?'

Nelsinho levanta a mão e logo pede ao patrão: 'Posso rabiscar no poste, Cocão?'. Permissão dada, Nelsinho pega a gilete e escreve, começando as palavras entre os ombros de Gilsinho e terminando na lombar:

"Familia 3º DP  
Estrupado é diferente
Sem perdão
Rabo da geral"

Enquanto o sangue escorre, Nelsinho se prepara para sodomizá-lo. Enquanto o faz, faz juras de amor eterno à noiva da cela. 'Agora tu é nossa, vai servir a geral aqui. Fica calmo, você ainda se acostuma e gosta, menina'. Os outros detentos fazem um burburinho na tentativa de organizar uma fila. Xeroso, o mais jovem dos prisioneiros, fica de canto, desinteressado da brincadeira dos irmão. Cocão logo vê e ordena: 'Tu é o próximo lá, irmãozim'. 'Gosto de cu de homem não, Cocão, na boa.' 'E quem falou que essa porra ai é homem? Tu é o próximo'.

Gilsinho só se lembra da história até aí e é isso que ele conta para o delegado Matoso, entre soluços e tremedeiras. Gilsinho implora com toda a sua emoção para que seja colocado no seguro.

Ouvindo: IAM - La Fin de Leur Monde

Monday, March 21, 2011

Pílulas do cotidiano na metrópole

Tem um carro parado no cruzamento, sem semáforo, só a faixa de pedestres mesmo. Uma mulher de cada lado da rua, prontas para atravessar. O motorista fala algo para menina que vem de lá. Linda, coisa gostosa, maravilha. O carro passa e vai embora. A menina que vem de cá entreolha a que vem de lá. 'Idiota'. 'Sem vergonha'. Cada uma elogia o motorista à sua maneira, se entreolham já de canto de olho. Nunca mais se verão.


Uma mulher velha, bem velha está parada dentro do ônibus, ocupa todo o espaço possível para quem entra no ônibus. Ela vai descer no quarto ponto a partir do começo da história. O moço entra apressado, porém, educado. Quer passar, a velha quer ficar ali parada. O moço xinga baixinho, esbarra propositadamente na velha. Quando o moço lembra do caso, a velha já desceu.


Um homem está sentado no restaurante, desses onde come-se o que se quer por um preço único. Senta-se e come tranquilo. Uma mulher aparece na mesa em frente, mas eram três mesas de distância entre os dois. Olham um para o outro alternadamente. Os olhares não se cruzam. Enquanto pensa em com eram bonitos os cabelos da mulher, derruba feijão em seu colo. Xinga em silêncio e pragueja, enquanto a mulher estende o braço pedindo a conta.


O moleque anda na rua distraído, cheio de som em seus ouvidos. Escuta seu mp3 player no volume máximo. O cachorro parecia quieto e calmo. O menino não faz menção de afastar-se do cão. Abruptamente, o cão dá o bote e trava a mandíbula na perna do moleque. O dono do animal aparece e culpa o menino pelo ataque.


Um homem sentado ao lado de um monte de lixo arruma seu isqueiro, testa, risca, risca, risca. Parece que agora funciona. Seleciona um pedaço de papel alumínio no meio da lixeira. O homem tem algo precioso bem seguro entre o polegar e o indicador da outra mão. Parece que vai fumar uma pedra.


Tem um homem parado no cruzamento. Depois de muito vacilar, resolve atravessar a rua, confiante no sinal fechado. Caminha decidido rumo ao outro lado da rua. Um carro passa e leva o homem aos ares. O homem cai desacordado. Duas mulheres viram a cena, cada uma de um lado da rua. As duas caminham em direção ao homem. 'Coitado'. 'Filho da puta'. A segunda falava do motorista, não do atropelado. Após testemunharem o acidente diante da polícia, cada uma toma seu rumo, certas de que nunca mais se verão.


Colaborações: você pode deixar sua cena nos comentários que eu publico aqui:


Um menino está bebendo uma breja com amigos na faculdade. Chega uma louca com uma bolsa e tenta seduzi-lo. O menino nega o beijo da linda desconhecida e toma 3 bolsadas na cara.


Três homens na 'cabine' de um caminhão estão transportando algum tipo de produto para abastecer algum tipo de comércio. Uma mulher desce a rua ao mesmo tempo que o caminhão sobe. Ao olhar sem pretensão alguma para o veículo, avista o motorista tapando a boca, o companheiro ao lado tapando os olhos, e o terceiro tapando os ouvidos. E o caminhão e a moça seguem seus rumos.


A mulher de meia idade chega sozinha ao bar. Vê duas lésbicas se beijarem e pergunta a um homem sozinho como ela se não quer fazer igual. Ele diz que não. A mulher de meia idade não se abala, pois mora ali do lado e só foi ao bar para encher a cara.

Ouvindo: Birdy Nam Nam - Love your Enemy

Tuesday, February 22, 2011

Não pergunte ao moço

- Moço, posso saber sua religião?

O moço fora pego de surpresa, estava escorado na parede. A sola de seu tênis sujava a tinta em que encostava. Fumava um cigarro de filtro vermelho. Lucky Strike, se não me engano. Não estava preparado praquilo.

- Por que?

O moço queria ganhar tempo. Perguntou "por que" soltando fumaça, tanto pela boca quanto pelo nariz. A fumaça cobria seu rosto enquanto pensava em uma saída.

- Por nada, pra saber só.

O moço tira o pé da parede, se desescora, se imposta. Barriga pra dentro, peito pra fora. Lembrava das eternas palavras de seu tio. Seu tio tirava sua concentração diante do inquisidor. O inquisidor continua impávido e paciente.

- Mas como assim, isso é pergunta que se faça? Que troço mais deselegante.

A paciência do moço vai indo cada vez mais longe. Na verdade, a paciência já tinha ido embora e o que sobrara era mera gentileza.

- Né isso não, senhor, é só uma pergunta. O senhor tem religião?

O moço acende outro cigarro. Traga fundo, quase não tem fumaça pra sair. Olha o maço. Putaqueopariu, tá acabando essa porra. Tá acabando assim como a gentileza, assim mesmo, de uma hora pra outra.

- E o que você tem a ver com isso, rapaz?

Fuma. Bate a cinza nervosamente com a ponta do indicador. Só faz isso quando está nervoso. Quando não, bate com o dedão contra o começo do filtro. Suja o chão. O chão é a maior testemunha que ele passou por ali e fumou. Entre cinzas e quimbas, podia-se dizer que o moço esteve naquele mesmo lugar, tranquilo, por pelo menos uma hora. Salvo se ele fosse um fumante compulsivo, claro. A pálpebra salta, o fôlego perde ritmo, o lábio fica frouxo. O moço está realmente nervoso. E não vê saída digna praquela situação.

- É curiosidade. Perguntar ofende, por acaso?

O moço perde a calma de vez, apaga o cigarro pisando-o no chão. Suja mais ainda seu quadradinho, que outrora poderia ser chamado de um lugar para relaxar. Ofende, claro que ofende, seu grandissíssimo filhodaputa. A mão direita fecha de ficar branca. A mão está travada e parte com força em direção à fuça do curioso. O curioso toma um soco servido no nariz e cai. Ele está sufocando com o sangue, que escorre tanto pela boca quanto pelo nariz.

- Calma moço, eu só queria saber qual é sua religião.

Ouvindo: Lovage - Pit Stop

Friday, January 28, 2011

José e Paulinha: uma história de amor - parte 2

- Oi tia, olha, esse aqui é o Zé, meu namorado.

Mirian esboça uma reação quase tirando os olhos da tela da TV, que transmite os momentos finais de Araguaia:

- Ahn?

- Prazer, José - o namorado se antecipa.

- Ah, oi.

Mirian tem 42 anos e gosta de TV. Mirian gosta mesmo de TV com conhaque e cigarro e pode passar a vida toda colada no sofá. Mirian queria que a sobrinha Paulinha fosse mais parecida com a índia Estela, estrela de sua novela. Miriam é feia e sabe disso - "é a idade, né gente?". Na verdade, Mirian sempre fora feia e a idade tinha pouca culpa nesse processo. Mirian conheceu Paulinha no enterro de Marta, sua única irmã. Desse dia em diante, Mirian e Paulinha formariam o que chamaremos aqui de família.

Mirian nunca fez sucesso entre os homens que conheceu. Mirian nem gosta tanto assim de homem. Paulinha sentiu isso desde cedo durante a supervisão de banho ministrada pela tia. "Tem que ver se tudo tá limpinho, menina, deixa a tia dar uma olhadinha". A passagem das alisadas para as dedadas, do chuveiro para o quarto, das bolinadas maliciosas às linguadas explícitas, todo o processo não demorou mais que seis meses. Paulinha tem nojo de Mirian. Desde sempre. Para sempre.

- Fica a vontade aí, João - Mirian fala sem vontade de olhar na cara do sujeito.

- É José, senhora.

Há exatos 45 minutos atrás, José não tinha planos de tornar-se o namorado de Paulinha. José queria, José só pensava em matá-la dentro do quarto sujo e barato. Paulinha ainda preparava a cena para seu trabalho, abrindo as cortinas para arejar o clima. José vem atrás e fecha o pano com um gesto brusco.

- Que é isso, gato? Tá muito quente aqui.

- É que tem os vizinhos, gosto de gente me olhando não.

- Esse pessoal aí não liga pra essas coisas, tão tudo acostumado já.

José não liga, deixa a cortina fechada. Paulinha, de frente pra cama, tira lentamente a calça apertada que demora em descolar de seus quadris. Rebola de novo. Provoca. José vai atrás e agarra Paulinha pelo pescoço, usando toda a força de suas duas mãos.

- Calma, lindo. Você gosta bruto, assim? - Paulinha continua lânguida, serpenteando seu quadril de encontro ao sexo de José.

José sente algo diferente. Não era mais aquele desejo que o consumia há tempos. Era algo diferente, sim, aquilo era puro e simples tesão. Tesão por uma puta barata, em um quarto sujo. José afrouxa a pegada no pescoço de Paulinha.

- Gosto sim. Você topa?

- Claro, lindo.

José parte para cima de Paulinha para fazer o melhor sexo de sua vida. José tem gana, José tem gás, tem um apetite feroz pela carne da puta que o serve na cama. Fode como um animal, sem querer parar, sua última chance de mostrar ao mundo seu potencial como macho. Quinze minutos depois, cai pro lado, exausto. José chora copiosamente, soluçando como uma criança assustada. Paulinha adorou José - "puta não tem tesão, mas tem vezes que acontece, né, moço?". José se confessa. José conta seus desejos mais macabros. Paulinha sabe que escapou da morte. José faz juras a Paulinha. Paulinha sente também que ama José. Paulinha e José seguem andando para a casa de sua tia.

- Então, é José, senhora. - José ainda sente o peito apertado e odeia a desatenção de Mirian. A veia de seu pescoço palpita. A testa está suada e as mãos estão trêmulas. Paulinha sente conhecer José, estão ligados de corpo e alma nesse amor bandido. Paulinha sugere:

- Zé, você não prefere que a gente feche a cortina?

Mirian não liga para a fala de Paulinha. Mirian quer que os dois se fodam. José responde com um sorriso malicioso em seu rosto. José sabe que Paulinha sabe que ele quer matar. Matar ali mesmo, matar agora e deixar fluir o desejo em seu corpo.

- Fecha sim, amor.

José investe com toda sua força contra o pescoço de Mirian e aperta até ouvir as cartilagens do pescoço da velha nojenta crepitando contra seus dedos, que estão roxos. Mirian desfalece com os olhos virados pro alto, baba grossa e farta escorre de seu queixo. Mirian está morta. Paulinha e José estão felizes e trocam olhares de cumplicidade. Com as cortinas fechadas, comemoram seu amor ao lado da tia morta.

Ouvindo: Roots Manuva - Snake Bite

Thursday, January 27, 2011

José e Paulinha: uma história de amor

Paulinha tem 17 anos - "mas não conta pra ninguém não, viu, moço". Paulinha tem os cabelos longos e alisados às pressas, com as pontas finas e frágeis. Ela veste calças muito apertadas, nota-se um pneuzinho que insiste em fazer a divisa entre a calça e o top. Pneuzinho provocante, mordível, apetitoso. O top tem uma alça pendente e o sutiã de oncinha aparece por onde quer que ela balance seus quadris pelo centro da cidade.

Paulinha tem cara de índia brava, os olhos levemente rasgados, a pele morena e desfavorecida pela maquiagem barata. Paulinha é sozinha - "na verdade eu moro com a minha tia, moço, mas isso aí tanto faz". Paulinha é sozinha porque sua tia é amiga da TV, do conhaque e dos cigarros de filtro branco. Paulinha quer que sua tia se foda. Na sua boca, carnuda e pintada em vermelho abundante, ela é uma "garota de pograma" - "mas tem gente que adora chamar de puta, né moço?". O que Paulinha quer mesmo da vida é foder com o mundo inteiro.

José tem 52 anos, mas em sua boca rodeada por um bigode pra lá de nojento, insiste em comentar que aparenta 45. Veste traje social completo, ritual que repete todos os dias úteis desde 1984. Bancário convito, amante do stress cotidiano, fuma inveteradamente e toma café sempre que tem uma chance.

José é sozinho. Na verdade, tem mulher e dois filhos. Mas José não tem tempo pra essas bobagens de carinhos e chamegos. José quer que sua família se foda. Há alguns meses, uma sensação estranha aumenta ainda mais o nó na garganta causado pela gravata colorida que o acompanha sempre. Um tipo de  ar preso no peito, uma ânsia, uma vontade esquisita que não lhe dá paz. Em seu íntimo, José sabe que sente um desejo incontrolável de matar. José quer foder o mundo inteiro.

José passa pela rua, passo apertado e olhar perdido, pronto para ser fisgado por qualquer outro olhar que passeasse pela R. Libero Badaró às 17h14 daquele dia. Paulinha está parada na calçada, com as costas coladas  à parede, mexendo descompromissadamente na alça pendente de seu top. Paulinha joga olhares para todos os lados. O seu olhar encontra o de José. José responde ao seu olhar, simplesmente sem desviar o olho à primeira instância.

A experiência de Paulinha fala alto. Paulinha sabe bem reconhecer boas oportunidades de negócio. Tiozinho com cara de vendedor, suado, bigode amarelo de cigarro: dinheiro rápido e fácil. Dez minutos olhando para o alto enquanto o cliente faz seu vai-e-vem desajeitado, resfolegando em cima da serviçal e amaldiçoando o clímax que chega cedo demais.Um lencinho pra ele, um banheiro pra ela, dinheiro no bolso e já era. Paulinha tem certeza do roteiro e convida:

- Bora fazer um amor gostoso?

José não é do tipo que come putas. Por mais que seja um canalha convicto, dizia ter nojo daquilo. Mas a sensação que o acompanhava há tempos apareceu galopando em seu peito, pôs seu coração em disparada, os olhos arregalados, o suor na testa, tudo indicava: chegou a hora. José topa.

- Vambora.

Paulinha sobe as escadas na frente. Rebola propositalmente para antecipar uma semi-ereção que lhe pouparia uns 3 minutos de trabalho. José sobe atrás. Desinteressado diante da bunda que balança à sua frente, José só pensa em matar. Paulinha abre a porta do quarto, deixa a bolsinha na cadeira, abre as cortinas para arejar o quarto do moquifo alugado a 10 reais. José vem atrás, mas não concorda com a cortina aberta diante da vizinhança. Fecham-se as cortinas, começa o espetáculo.

Ouvindo: Birdy Nam Nam - Jazz it at Home

Wednesday, January 26, 2011

2011: tendências para a sua saúde

Como sempre fora de hora, meu amigo e confidente Milton Nacimento enviou a lista de tendências para 2011 que rabiscamos a quatro mãos numa tarde ensolarada entocados em um bar de nome estranho no centro velho da cidade.

A lista não deve ser levada a sério, tratam-se de palpites furados sobre o futuro do homem como manifestação da vontade divina na Terra. Nesta primeira publicação da longa lista, daremos as tendências na linha de doenças - das mais graves e reais às mais psicossomáticas.

Reclamose: tida por Milton como o novo mal da sociedade moderna. Não adianta reclamar, nada que possa aplacar seu estado lastimoso será feito. Inútil tentar sobreviver e passar por cima dos obstáculos, o sintoma mais grave toma a vítima de jeito e a impede de fazer qualquer coisa senão reclamar. Não há tratamento, nem na raiz do mal nem sintomático.

Medrite aguçada: inútil sair do lugar, fique em casa, coloque umas cobertas por cima do futuro cadáver e relaxe. O fim está perto. Aliás, acho que ouvi o fim bater na porta. Será subito, assustador, mas não passará imperceptível. O cavaleiro do apocalipse atacará suas vítimas olhando fundo em seus olhos. Só o medo salvará os doentes, cujo tratamento é por demais arriscado para que qualquer vítima dê uma chance ao azar.

Colorite: doença que ataca os pacientes pelas calças, passando pelos óculos e que, progressivamente, atinge todos os tecidos vestidos pelo enfermo. Caso passe para os cabelos, a colorite pode deixar o indivíduo inoperante diante da sociedade.

Aparecite: a falta de amigos palpáveis e reais, daqueles que você pode abraçar, correr lado a lado e arrotar abraçados enquanto correm já derrubou muitos, mas em 2011 terá seu auge. Inútil não tentar aparecer. Use seu tempo para mostrar ao mundo- sim, o mundo inteiro está de olho em suas peripécias digitais - o quanto você "r a nice guy'. Use idiomas estrangeiros. Alemão impressiona. Francês derrete corações. Russo quebra barreiras entre você e o topo do mundo. Apareça. Não há cura para isso.

Artrose, nevralgia, desvio de coluna, estrabismo: assim como nas últimas listas de tendências feitas por Milton, as doenças tensas só tendem a aumentar. Chegam de mãos dadas ao medo, às reclamações e todo o paparico do pessoal que assiste sua vida virtual. Há rumores que existam curas. Ainda duvido e achamos - Milton e eu - arriscado.

Ficamos por aqui, encerrando a publicação das tendências para 2011. Não tema nada. Milton Nacimento nunca entendeu muito sobre a vida. Nenhuma das doenças acima foram estudadas a fundo. Não há nada conclusivo sobre nada disso aí acima. Fique calmo, deite-se no sofá, uma coberta colorida, sintoniza no Datena. Não se esqueça de compartilhar tudo com seus amigos. Amigo é coisa pra se guardar. Tenha um bom dia, bom ano.

Ouvindo: La Caution - Thé à la Menthe

Thursday, January 20, 2011

Soldado de chumbo

X-E-R-O-S-O. Termina a demorada tarefa de marcar seu novo apelido na parede do barraco. Nem tão demorada como o processo de aceitação da alcunha. Tudo mudara depois da operação limpeza deflagrada pelo governo carioca. Muita polícia, muito milico, cagueta a dar com pau e a atividade teve que diminuir.

A boca agora funciona na encolha. Muito longe dos dois quilos do branco e 50 do preto que saíam por mês antes da invasão. Cidão, antes gerente do preto, hoje é o frente e vive entocado de barraco em barraco. Os 35 soldados estão reduzidos a 3. A maioria é vapor - desce o morro com mochilas nas costas e sobem com dinheiro no bolso. Eram 23 moleques, entre eles, Nequinho, filho da dona Marli, 12 anos, 1,35m de altura, 32 kilos pesados na farmácia da esquina.

Nequinho ganhou apelido novo dois dias depois que o Caverão subiu o Morro dos Mineiros. Assim que viu o carro preto subindo, subiu o morro na frente, metade da mochila carregada de mercadoria, berrando esbaforido:

- A máquina de matá pobre tá subindo. Tá subindo, vão matar geral, aê!

Nequinho é um menino obediente e focado. Sempre de orelha em pé para as dicas dos soldados e do patrão. Enquanto gritava, lembrava: 'pode ir pra casa não, mermão, passam o rodo na tua família toda se não te acham lá'.

Virou de surpresa numa viela à sua esquerda, entrou por baixo do barraco do Seu Quinze e pulou com fé no valão do esgoto. 'Só saio daqui morto, esses alemão não me pega nem fudendo, aí'. Repetia o mantra enquanto espantava ratos, baratas e tudo mais que passeia pelo esgoto e insiste em colar em seu corpo.

O tempo passa devagar e, ao meio dia de um dia quente, a vala é um lugar ingrato. O cheiro de podre entorpece Nequinho, que não pode desistir, não pode desentocar antes que os inimigo dêem pé da favela. Sonha alto - ou talvez alucine de fome, de enjôo, de cansaço. Quer virar soldado logo, andar de quadrada enfiada no bermudão, comer as mina geral, botar um Nike no pé, tomar Red Bull, cheirar até umas horas, virar sujeito homem e não largar dessa vida nunca mais.

No fim do segundo dia enfiado na sujeira, Nequinho ouve o aviso dos fogueteiros - somente foguetes de um tiro só, estourados um a um durante um minuto seguido por uma salva de "treme-terra" de 12 tiros. A senha exata para saber que a polícia sumiu dali. Na base do arrego ou por ordem do governador, o que interessa pra ele é que ele tá salvo.

Tira a cara do buraco e percebe como os ratos vêem a gente, olhando por baixo, sujo e malvisto. Limpeza, o vai e vem de sempre, tudo "normal". Resolve meter o corpo pra fora e subir até a boca, falar com o Cido, mostrar seu heroísmo e a meia carga que ainda conseguira salvar na mochila. A visão de tantos rostos desolados na subida do morro deu a pista para o que o moleque iria encontrar lá no alto. O patrão não se anima muito quando vê Nequinho chegar na boca, mas assim mesmo abre o canto da boca com um sorriso de dentes pretos e finos.

- Caralho, que cheiro é esse, Nequinho?
- Na moral, tava entocado, aí. Tava lá na vala.
- Aê Cheroso!
- Qualé, Marcão, dei mole não rapá.

Aos 16 anos de idade, Marcão era o melhor soldado da boca e foi um dos três que sobraram em pé depois que Cido ordenou que começassem a trocação com a polícia. 90% dos soldados morreram - de tiro trocado ou de execução, o fato é que nenhum dos moleques saiu dali preso. A sorte de Cido é que levaram Cotoco, chefe da endolação, em seu lugar. Ouviu tudo por debaixo do barraco, mas não deus as caras enquanto Cotoco era esculachado e forçado a dizer que era o gerente, o Cido da Biqueira. O patrão do morro sumiu um dia antes da invasão.

- Já é, aé, agora tu vai ser o Cheroso.

A palavra do chefe era palavra final.

- Tu sabe atirá, rapá?

Era a primeira vez que Nequinho, agora conhecido como Cheroso, não era tratado por moleque. Sem hesitar, mandou na lata:

- Claro que sei, ué.

-Então pega nessa quadrada que agora tu subiu de posição. Agora tu é soldado, irmão. Marcão, joga um radim na mão do Cheroso. Agora é tu, Cheroso e o Berola. Quem é o frente dessa porra aqui, caralho?

- É cê mesmo, Cidão. O baguio aqui é CV, tá ligado?

- Já é! Junta lá com o Berola e vamo metê atividade nessa porra, precisamo levantá a boca, ganhá uma merreca aí pra se sustentá.

Cheroso vira as costas e começa a descer o morro. Quer muito participar de um bonde e sentar o dedo nos inimigos. Sonha calado em participar de um bonde, daqueles bem sinistros, que vão entrar pra sempre por anedotário popular das favelas cariocas. Cheroso quer ser herói.

Ouvindo: Da Weasel - Dialectos da Ternura

Monday, January 10, 2011

O doce veneno que me levará pra longe daqui

Enfim encontrara a passagem que o levaria direto para o inferno, sem escalas, sem serviço de bordo, sem recepcionista nem fila de espera: cairia direto no colo do capeta, sem enrolação.

Havia dois meses que a ideia era fixa - aparecia na privada, na cama, estivesse só ou acompanhado, atrasado ou bem humorado: precisava morrer. Não era só um querer, era uma necessidade, tanto pra ele quanto para o mundo.

Era um homem de inquitações infinitas, mas a coragem era uma virtude que ele desconhecia. Ousado até chegara a ser vez ou outra, mas corajoso, jamais. Tinha medo até de gato filhotinho. Era um medricas.

Passou os dois meses recitando alto em sua cabeça: preciso morrer, quero morrer. Só o fim é minha salvação. Preciso morrer, quero morrer, só o fim.... E a ladainha ressoava o dia todo em sua mente.

Era um homem sozinho - o medo o impedia até mesmo de arrumar uma samambaia que alegrasse a sala da kitnete. A kitnete ficava no 1º andar - não que ele respeitasse o shabbat ou coisa assim. Era medo mesmo e o prédio não tinha apartamentos no térreo, que é bem mais seguro.

Sua passagem para o inferno estava diante de seus olhos, em cima da mesa, em frente à qual já estava sentado há duas horas. Fita o seu veneno, bilhete-só-de-ida dessa para melhor. Orgulhava-se da sua genialidade enquanto lembrava da chinelada que tomara na mão quando um dia tentou envenenar-se inocentemente com aquilo que hoje seria sua salvação.

Nada mais sublime que o doce veneno. Açucarado, até. Aquilo sim dava coragem de fazer. Só restava saber como: misturar os dois? Um de cada vez? Pegou na faca e começou a arranjar a manga, depois de decidir-se que tudo se misturaria no copo do liquidificador. Meio copo de leite, duas colheres de açúcar. Sempre fora um "formigão".

Liga na tomada, bate. Pronto. Senta-se novamente à mesa e bebe com gosto o veneno que o levaria para os braços de Satanás e longe dessa tortura que é viver. Passou três horas esperando pelo efeito mortal da manga com leite antes de começar a blasfemar. Nunca mais tomou leite, nunca mais comeu manga. E o pensamento insistente ainda habita sua cabeça, quiçá para sempre.

Ouvindo: AC/DC - Ride On