Monday, August 27, 2007

Benvindo a SP, o primeiro roubo que sofri

Andava de novo por aquelas ruas. Questão de reconhecimento. Ouvindo todas as vozes da rua. Reconhecendo rostos, perfis e probabilidades. Traçando arquétipos em poucos segundos, analisando por onde andava. Confesso as saudades e a alegria de ver que estamos bem em SP. As pessoas dormindo estiradas nas calçadas continuam sem mexer com as pessoas, ficam lá, bem paradinhas. Não sabemos se estão vivas, mortas ou passando um tempo no purgatório, alheios à cidade que corre aos seus pés. Continuava avaliando tudo, a moda, o comportamento, os preços. Foi quando paguei o preço da cidade. Foi quando me distrai um pouco mais. Olhei demais pro lado. Marquei. Ela estava lá me vigiando desde a hora que eu cheguei. Quanta inocência. Não pude avaliar, talvez subestimei o perigo que ela representava. Roubou na cara dura, na luz do dia. Assim que ela me viu desprotegido, a escada rolante roubou meu chinelo. E nem fugiu, nem correu. Benvindo a São Paulo, mas não recomendo o passeio descalço.
Ouvindo: Racionais MC´s - Ao Vivo

Thursday, August 16, 2007

Small cigarrete business

-Small cigarrete business.
Era a unica frase que ele me disse repetidas vezes, sempre a piscar o olho esquerdo e a abrir um sorriso franco e misterioso. Coisa de moleque maroto, que estava a aprontar alguma e com aquele piscadela e aquele sorriso buscava meu consentimento. Sentou-se a minha frente naquela cabine suja, de estofados cor de vinho que ainda guardavam algum glamour das viagens de trem que se fazia em tempos remotos. Hoje o vagao servio que faz o demorado trecho Belgrado - Sofia nao carrega mais turistas ricos com suas familias barulhentas, nem homens de negocios com suas maletas de couro cheias de traquitanas, codigos, dinheiros e papeis valiosos. Sao apenas moleques viajantes com mochilas grandes e sujas pelas noites maldormidas em estaçoes, moleques que veem do brasil, da Holanda, da Espanha. O vagao acrrega sujeira, descuido, banheiros porcos. Parece que ha muito nao recebe passageiros dignos de sua limpeza. O controlador serve turkish kaveshi (o cafe turco, feito sem filtrar o po) pela modica quantia de 80 dinares servios. Nada mais para espantar a fome ou o sono.

A maior parte dos viajantes é composta por novos homens e mulheres de negocios, que carregam malas feitas em tecido barato, malas quadradas que nao contem mais os documentos, nao contem mais os papeis de outrora. As malas sao muitas e quadradas e carregam mercadoria que se transforma em ouro pelo simples cruzar de uma fronteira.

-Small cigarrete business.

O homem repete a frase, com a mesma piscada e o mesmo sorriso. Sorrio de volta dando o consentimento que ele tanto esperava. Neste momento meu amigo contrabandista transforma-se em um imparavel trabalhador. Bom seria se a companhia ferroviaria servia tivesse funcionarios tao preocupados com os trens como o homem que agora tirava a camiseta, exibindo uma tatuagem de estilo carcerario que dizia "ANA", sacou seus tenis Nike e logo estava pendurado nos braços das poltronas, com duas chaves de fenda na boca. Diante de mim ele desparafusava com maestria o teto da cabine e, em menos de 5 minutos, ele tinha o esconderijo perfeito para mais de 20 pacotes de Viceroy adquiridos em territorio servio. Como um ritual, sentou-se de frente para mim, calçou os tenis, vestiu a camiseta, piscou, sorriu e disse:
-Small cigarrete business.

O trecho entre Belgrado e Sofia possui 329 km de distancia e é percorrido pacientemente pelo trem em 8 horas, que sao passadas de maneiras distintas pelos passageiros. Os mochileiros dormem, olham pela janela, comem porcarias, contam historias e fazem planos para a Bulgaria. Ja os contrabandistas, que aumentavam a cada parada e ja dominavam facilmente o vagao passavam o tempo a negociar, sempre a mudar de cabine, a esconder coisas, a fazer e a receber ligaçoes no celular, numa tensao constante que fica estampada nos rostos de servios e albaneses que ganham a vida transformando 8 euros em 50 euros no final da viagem.

O amigo contrabandista teve um estalo e de repente, levantou-se diante de mim, piscou, sorriu, desta vez nao disse nada e começou mais uma vez o ritaul. Tenis, camiseta, chaves de fenda e rapidamente retitou parte do estoque de minha cabine e sumiu pelo trem. Acredito que ele fez isso umas 10 vezes, sempre seguindo o mesmo ritual, andando pra la e pra ca no trem. Foram tantas as mudancas que eu nao sei se ainda restava algo em minha cabine, o homem era imparavel e se ele conseguiu me confundir, eu que estava no trem desde o inicio, imagina o que ele podia fazer com a policia?

Depois de milhares de paradas em locais improvaveis e inexplicaveis (talvez a explicaçao para como percorrer 329 km em 8 horas), sobem ao trem os passageiros mais esperados pela parte nativa dos passageiros: a policia bulgara, composta pelos policiais "federais", vestidos em calças verdes e camisas brancas descuidadamente deixadas para fora das calças e a policia alfandegaria, vestida de brim azul um pouco mais bem cuidado. A policia federal passa primeiro a pedir passaportes com um olhar bastante parecido com o do amigo contrabandista. Um olhar um pouco desconfiado, de canto de olho, sempre a esperar pela sua reaçao. Tipo "sei bem que voce ta fazendo coisa errada, confessa logo que é mais facil".
-BraZil!!! Ronaldinho!!
-Yeah!!! Bulgaria!! Stoitchkov!!!
-Yes, Stoitchkov!!

Esse era o tipo de conversa que os policias do leste europeu costumavam ter comigo e o policial gordinho, com cara de filme bulgaro (acho que nunca assisti um filme bulgaro, mas com certeza teria um ator com a cara dele) nao decepcionou e lembrou-me de nosso craque de dentes tortos que abre portas assim como Pelé fez um dia. Depois dos passportes, era a vez da pergunta "anything to declare"? Nada alem de roupas sujas, uma maquina fotografica barata, um pacote de biscoitos, um pouco de tabaco e coisas pessoais. Mas eles nao estavam preocupados comigo, passavam pelas cabines com o olhar caracteristico, "eu conheço voces, sei bem o que voces tem, precisamos conver$ar). Passaportes passam para as maos dos policiais recheados de dinheiro num lugar onde 20 euros poder ser a diferença entre o sim e o nao. Os homens de azul olham com desprezo as malas quadradas e todos andam de um lado para o outro a conversar baixinho, uma negociaçao eterna. Nosso amigo parecia ter uma posiçao de liderança e passava por todas as cabines. De frente para mim um outro contrabandista, mais velho e menos ritualistico, arrumava um pacote, um tipo de "Happy Meal" em caso de nece$$idade: um litro de J&B e dois pacotes de Viceroy.

A negociaçao é ininitas, policiais entram e saem das cabines, mexem nos bolsos, fazem perguntas, ameaças. Do lado de fora do trem, os federais conversam sempre em segredo, com olhar grave. Nunca desejei tanto saber falar servio ou bulgaro, entender os termos que eles usavam. Imagina como fica em servio :"ai, mano, sujou pra voce, voce vai rodar com esse monte de cigarro ai, vamo te jogar na cadeia... é talvez temos um outro jeito pra resolver a situçao" .

Ficamos mais de uma hora e meia parados na fronteira. Agora era a vez das policias fazerem o acerto entre elas. Dinheiro vai, dinehiro vem, tudo na cara dura mesmo, nao ha testemunhas, ha contrabandistas, policiais corruptos e viajantes que nao entendem e nao falam um caralho na lingua local, totalmente desacreditados no caso de qualquer denuncia. Um contabandista é levado para longe dos olhares curiosos dos moleques holandeses, que acham tudo exotico, sempre tudo é uma grande experiencia. Brasileiros ficam um pouco mais preocupados quando a policia leva alguem de canto, mas era so para tirar mais um dinheiro de um contrabandista em particular. Sai da janela e sentei em minha cabine, onde o senhor guardava o pacote, desse vez nao precisou de tanto, o dinheiro foi suficiente para sustentar os pobres policiais bulgaros ate a chegada do proximo trem.

Tentei sair do trem para buscar algo para comer na estacao onde estavamos parados, mas recebi a gentil ordem de um dos chefes da quadrilha (de policiais):

-Back in vagon!

Sem problemas, senhor, estou aqui para obedecer. Alegremente, meu amigo contrabandista sai do trem, vai até o café e volta com dois copos de leite achocolatado. Sorri para o policial chefe e sobe no vagao. Era hora de partir. O trem sai lentamente da estacao fronteiriça, o tabaco havia virado ouro, a mercadoria estava a salvo. Contrabandistas seguem com infinitas negociaçoes, agora a moeda que manda é o euro. Meu amigo senta-se, pisca e sorri. Oferece-me um cigarro, nada de Viceroy, ele fuma Dunhill.
-This is my small cigarrete business.

Ouvindo: AC/DC - TNT (tinha um moleque bulgaro no trem, que desceu numa estacao que ficava no meio do nada que nos presenteou com um MP3 player com uma seleçao de roquenrol de responsa e umas caixinhas de som. Depois de umas duas horas de viagem, ele ligou o lance logo com TNT. Nessas horas temos a certeza que existe algum plano superior)