Friday, January 28, 2011

José e Paulinha: uma história de amor - parte 2

- Oi tia, olha, esse aqui é o Zé, meu namorado.

Mirian esboça uma reação quase tirando os olhos da tela da TV, que transmite os momentos finais de Araguaia:

- Ahn?

- Prazer, José - o namorado se antecipa.

- Ah, oi.

Mirian tem 42 anos e gosta de TV. Mirian gosta mesmo de TV com conhaque e cigarro e pode passar a vida toda colada no sofá. Mirian queria que a sobrinha Paulinha fosse mais parecida com a índia Estela, estrela de sua novela. Miriam é feia e sabe disso - "é a idade, né gente?". Na verdade, Mirian sempre fora feia e a idade tinha pouca culpa nesse processo. Mirian conheceu Paulinha no enterro de Marta, sua única irmã. Desse dia em diante, Mirian e Paulinha formariam o que chamaremos aqui de família.

Mirian nunca fez sucesso entre os homens que conheceu. Mirian nem gosta tanto assim de homem. Paulinha sentiu isso desde cedo durante a supervisão de banho ministrada pela tia. "Tem que ver se tudo tá limpinho, menina, deixa a tia dar uma olhadinha". A passagem das alisadas para as dedadas, do chuveiro para o quarto, das bolinadas maliciosas às linguadas explícitas, todo o processo não demorou mais que seis meses. Paulinha tem nojo de Mirian. Desde sempre. Para sempre.

- Fica a vontade aí, João - Mirian fala sem vontade de olhar na cara do sujeito.

- É José, senhora.

Há exatos 45 minutos atrás, José não tinha planos de tornar-se o namorado de Paulinha. José queria, José só pensava em matá-la dentro do quarto sujo e barato. Paulinha ainda preparava a cena para seu trabalho, abrindo as cortinas para arejar o clima. José vem atrás e fecha o pano com um gesto brusco.

- Que é isso, gato? Tá muito quente aqui.

- É que tem os vizinhos, gosto de gente me olhando não.

- Esse pessoal aí não liga pra essas coisas, tão tudo acostumado já.

José não liga, deixa a cortina fechada. Paulinha, de frente pra cama, tira lentamente a calça apertada que demora em descolar de seus quadris. Rebola de novo. Provoca. José vai atrás e agarra Paulinha pelo pescoço, usando toda a força de suas duas mãos.

- Calma, lindo. Você gosta bruto, assim? - Paulinha continua lânguida, serpenteando seu quadril de encontro ao sexo de José.

José sente algo diferente. Não era mais aquele desejo que o consumia há tempos. Era algo diferente, sim, aquilo era puro e simples tesão. Tesão por uma puta barata, em um quarto sujo. José afrouxa a pegada no pescoço de Paulinha.

- Gosto sim. Você topa?

- Claro, lindo.

José parte para cima de Paulinha para fazer o melhor sexo de sua vida. José tem gana, José tem gás, tem um apetite feroz pela carne da puta que o serve na cama. Fode como um animal, sem querer parar, sua última chance de mostrar ao mundo seu potencial como macho. Quinze minutos depois, cai pro lado, exausto. José chora copiosamente, soluçando como uma criança assustada. Paulinha adorou José - "puta não tem tesão, mas tem vezes que acontece, né, moço?". José se confessa. José conta seus desejos mais macabros. Paulinha sabe que escapou da morte. José faz juras a Paulinha. Paulinha sente também que ama José. Paulinha e José seguem andando para a casa de sua tia.

- Então, é José, senhora. - José ainda sente o peito apertado e odeia a desatenção de Mirian. A veia de seu pescoço palpita. A testa está suada e as mãos estão trêmulas. Paulinha sente conhecer José, estão ligados de corpo e alma nesse amor bandido. Paulinha sugere:

- Zé, você não prefere que a gente feche a cortina?

Mirian não liga para a fala de Paulinha. Mirian quer que os dois se fodam. José responde com um sorriso malicioso em seu rosto. José sabe que Paulinha sabe que ele quer matar. Matar ali mesmo, matar agora e deixar fluir o desejo em seu corpo.

- Fecha sim, amor.

José investe com toda sua força contra o pescoço de Mirian e aperta até ouvir as cartilagens do pescoço da velha nojenta crepitando contra seus dedos, que estão roxos. Mirian desfalece com os olhos virados pro alto, baba grossa e farta escorre de seu queixo. Mirian está morta. Paulinha e José estão felizes e trocam olhares de cumplicidade. Com as cortinas fechadas, comemoram seu amor ao lado da tia morta.

Ouvindo: Roots Manuva - Snake Bite

Thursday, January 27, 2011

José e Paulinha: uma história de amor

Paulinha tem 17 anos - "mas não conta pra ninguém não, viu, moço". Paulinha tem os cabelos longos e alisados às pressas, com as pontas finas e frágeis. Ela veste calças muito apertadas, nota-se um pneuzinho que insiste em fazer a divisa entre a calça e o top. Pneuzinho provocante, mordível, apetitoso. O top tem uma alça pendente e o sutiã de oncinha aparece por onde quer que ela balance seus quadris pelo centro da cidade.

Paulinha tem cara de índia brava, os olhos levemente rasgados, a pele morena e desfavorecida pela maquiagem barata. Paulinha é sozinha - "na verdade eu moro com a minha tia, moço, mas isso aí tanto faz". Paulinha é sozinha porque sua tia é amiga da TV, do conhaque e dos cigarros de filtro branco. Paulinha quer que sua tia se foda. Na sua boca, carnuda e pintada em vermelho abundante, ela é uma "garota de pograma" - "mas tem gente que adora chamar de puta, né moço?". O que Paulinha quer mesmo da vida é foder com o mundo inteiro.

José tem 52 anos, mas em sua boca rodeada por um bigode pra lá de nojento, insiste em comentar que aparenta 45. Veste traje social completo, ritual que repete todos os dias úteis desde 1984. Bancário convito, amante do stress cotidiano, fuma inveteradamente e toma café sempre que tem uma chance.

José é sozinho. Na verdade, tem mulher e dois filhos. Mas José não tem tempo pra essas bobagens de carinhos e chamegos. José quer que sua família se foda. Há alguns meses, uma sensação estranha aumenta ainda mais o nó na garganta causado pela gravata colorida que o acompanha sempre. Um tipo de  ar preso no peito, uma ânsia, uma vontade esquisita que não lhe dá paz. Em seu íntimo, José sabe que sente um desejo incontrolável de matar. José quer foder o mundo inteiro.

José passa pela rua, passo apertado e olhar perdido, pronto para ser fisgado por qualquer outro olhar que passeasse pela R. Libero Badaró às 17h14 daquele dia. Paulinha está parada na calçada, com as costas coladas  à parede, mexendo descompromissadamente na alça pendente de seu top. Paulinha joga olhares para todos os lados. O seu olhar encontra o de José. José responde ao seu olhar, simplesmente sem desviar o olho à primeira instância.

A experiência de Paulinha fala alto. Paulinha sabe bem reconhecer boas oportunidades de negócio. Tiozinho com cara de vendedor, suado, bigode amarelo de cigarro: dinheiro rápido e fácil. Dez minutos olhando para o alto enquanto o cliente faz seu vai-e-vem desajeitado, resfolegando em cima da serviçal e amaldiçoando o clímax que chega cedo demais.Um lencinho pra ele, um banheiro pra ela, dinheiro no bolso e já era. Paulinha tem certeza do roteiro e convida:

- Bora fazer um amor gostoso?

José não é do tipo que come putas. Por mais que seja um canalha convicto, dizia ter nojo daquilo. Mas a sensação que o acompanhava há tempos apareceu galopando em seu peito, pôs seu coração em disparada, os olhos arregalados, o suor na testa, tudo indicava: chegou a hora. José topa.

- Vambora.

Paulinha sobe as escadas na frente. Rebola propositalmente para antecipar uma semi-ereção que lhe pouparia uns 3 minutos de trabalho. José sobe atrás. Desinteressado diante da bunda que balança à sua frente, José só pensa em matar. Paulinha abre a porta do quarto, deixa a bolsinha na cadeira, abre as cortinas para arejar o quarto do moquifo alugado a 10 reais. José vem atrás, mas não concorda com a cortina aberta diante da vizinhança. Fecham-se as cortinas, começa o espetáculo.

Ouvindo: Birdy Nam Nam - Jazz it at Home

Wednesday, January 26, 2011

2011: tendências para a sua saúde

Como sempre fora de hora, meu amigo e confidente Milton Nacimento enviou a lista de tendências para 2011 que rabiscamos a quatro mãos numa tarde ensolarada entocados em um bar de nome estranho no centro velho da cidade.

A lista não deve ser levada a sério, tratam-se de palpites furados sobre o futuro do homem como manifestação da vontade divina na Terra. Nesta primeira publicação da longa lista, daremos as tendências na linha de doenças - das mais graves e reais às mais psicossomáticas.

Reclamose: tida por Milton como o novo mal da sociedade moderna. Não adianta reclamar, nada que possa aplacar seu estado lastimoso será feito. Inútil tentar sobreviver e passar por cima dos obstáculos, o sintoma mais grave toma a vítima de jeito e a impede de fazer qualquer coisa senão reclamar. Não há tratamento, nem na raiz do mal nem sintomático.

Medrite aguçada: inútil sair do lugar, fique em casa, coloque umas cobertas por cima do futuro cadáver e relaxe. O fim está perto. Aliás, acho que ouvi o fim bater na porta. Será subito, assustador, mas não passará imperceptível. O cavaleiro do apocalipse atacará suas vítimas olhando fundo em seus olhos. Só o medo salvará os doentes, cujo tratamento é por demais arriscado para que qualquer vítima dê uma chance ao azar.

Colorite: doença que ataca os pacientes pelas calças, passando pelos óculos e que, progressivamente, atinge todos os tecidos vestidos pelo enfermo. Caso passe para os cabelos, a colorite pode deixar o indivíduo inoperante diante da sociedade.

Aparecite: a falta de amigos palpáveis e reais, daqueles que você pode abraçar, correr lado a lado e arrotar abraçados enquanto correm já derrubou muitos, mas em 2011 terá seu auge. Inútil não tentar aparecer. Use seu tempo para mostrar ao mundo- sim, o mundo inteiro está de olho em suas peripécias digitais - o quanto você "r a nice guy'. Use idiomas estrangeiros. Alemão impressiona. Francês derrete corações. Russo quebra barreiras entre você e o topo do mundo. Apareça. Não há cura para isso.

Artrose, nevralgia, desvio de coluna, estrabismo: assim como nas últimas listas de tendências feitas por Milton, as doenças tensas só tendem a aumentar. Chegam de mãos dadas ao medo, às reclamações e todo o paparico do pessoal que assiste sua vida virtual. Há rumores que existam curas. Ainda duvido e achamos - Milton e eu - arriscado.

Ficamos por aqui, encerrando a publicação das tendências para 2011. Não tema nada. Milton Nacimento nunca entendeu muito sobre a vida. Nenhuma das doenças acima foram estudadas a fundo. Não há nada conclusivo sobre nada disso aí acima. Fique calmo, deite-se no sofá, uma coberta colorida, sintoniza no Datena. Não se esqueça de compartilhar tudo com seus amigos. Amigo é coisa pra se guardar. Tenha um bom dia, bom ano.

Ouvindo: La Caution - Thé à la Menthe

Thursday, January 20, 2011

Soldado de chumbo

X-E-R-O-S-O. Termina a demorada tarefa de marcar seu novo apelido na parede do barraco. Nem tão demorada como o processo de aceitação da alcunha. Tudo mudara depois da operação limpeza deflagrada pelo governo carioca. Muita polícia, muito milico, cagueta a dar com pau e a atividade teve que diminuir.

A boca agora funciona na encolha. Muito longe dos dois quilos do branco e 50 do preto que saíam por mês antes da invasão. Cidão, antes gerente do preto, hoje é o frente e vive entocado de barraco em barraco. Os 35 soldados estão reduzidos a 3. A maioria é vapor - desce o morro com mochilas nas costas e sobem com dinheiro no bolso. Eram 23 moleques, entre eles, Nequinho, filho da dona Marli, 12 anos, 1,35m de altura, 32 kilos pesados na farmácia da esquina.

Nequinho ganhou apelido novo dois dias depois que o Caverão subiu o Morro dos Mineiros. Assim que viu o carro preto subindo, subiu o morro na frente, metade da mochila carregada de mercadoria, berrando esbaforido:

- A máquina de matá pobre tá subindo. Tá subindo, vão matar geral, aê!

Nequinho é um menino obediente e focado. Sempre de orelha em pé para as dicas dos soldados e do patrão. Enquanto gritava, lembrava: 'pode ir pra casa não, mermão, passam o rodo na tua família toda se não te acham lá'.

Virou de surpresa numa viela à sua esquerda, entrou por baixo do barraco do Seu Quinze e pulou com fé no valão do esgoto. 'Só saio daqui morto, esses alemão não me pega nem fudendo, aí'. Repetia o mantra enquanto espantava ratos, baratas e tudo mais que passeia pelo esgoto e insiste em colar em seu corpo.

O tempo passa devagar e, ao meio dia de um dia quente, a vala é um lugar ingrato. O cheiro de podre entorpece Nequinho, que não pode desistir, não pode desentocar antes que os inimigo dêem pé da favela. Sonha alto - ou talvez alucine de fome, de enjôo, de cansaço. Quer virar soldado logo, andar de quadrada enfiada no bermudão, comer as mina geral, botar um Nike no pé, tomar Red Bull, cheirar até umas horas, virar sujeito homem e não largar dessa vida nunca mais.

No fim do segundo dia enfiado na sujeira, Nequinho ouve o aviso dos fogueteiros - somente foguetes de um tiro só, estourados um a um durante um minuto seguido por uma salva de "treme-terra" de 12 tiros. A senha exata para saber que a polícia sumiu dali. Na base do arrego ou por ordem do governador, o que interessa pra ele é que ele tá salvo.

Tira a cara do buraco e percebe como os ratos vêem a gente, olhando por baixo, sujo e malvisto. Limpeza, o vai e vem de sempre, tudo "normal". Resolve meter o corpo pra fora e subir até a boca, falar com o Cido, mostrar seu heroísmo e a meia carga que ainda conseguira salvar na mochila. A visão de tantos rostos desolados na subida do morro deu a pista para o que o moleque iria encontrar lá no alto. O patrão não se anima muito quando vê Nequinho chegar na boca, mas assim mesmo abre o canto da boca com um sorriso de dentes pretos e finos.

- Caralho, que cheiro é esse, Nequinho?
- Na moral, tava entocado, aí. Tava lá na vala.
- Aê Cheroso!
- Qualé, Marcão, dei mole não rapá.

Aos 16 anos de idade, Marcão era o melhor soldado da boca e foi um dos três que sobraram em pé depois que Cido ordenou que começassem a trocação com a polícia. 90% dos soldados morreram - de tiro trocado ou de execução, o fato é que nenhum dos moleques saiu dali preso. A sorte de Cido é que levaram Cotoco, chefe da endolação, em seu lugar. Ouviu tudo por debaixo do barraco, mas não deus as caras enquanto Cotoco era esculachado e forçado a dizer que era o gerente, o Cido da Biqueira. O patrão do morro sumiu um dia antes da invasão.

- Já é, aé, agora tu vai ser o Cheroso.

A palavra do chefe era palavra final.

- Tu sabe atirá, rapá?

Era a primeira vez que Nequinho, agora conhecido como Cheroso, não era tratado por moleque. Sem hesitar, mandou na lata:

- Claro que sei, ué.

-Então pega nessa quadrada que agora tu subiu de posição. Agora tu é soldado, irmão. Marcão, joga um radim na mão do Cheroso. Agora é tu, Cheroso e o Berola. Quem é o frente dessa porra aqui, caralho?

- É cê mesmo, Cidão. O baguio aqui é CV, tá ligado?

- Já é! Junta lá com o Berola e vamo metê atividade nessa porra, precisamo levantá a boca, ganhá uma merreca aí pra se sustentá.

Cheroso vira as costas e começa a descer o morro. Quer muito participar de um bonde e sentar o dedo nos inimigos. Sonha calado em participar de um bonde, daqueles bem sinistros, que vão entrar pra sempre por anedotário popular das favelas cariocas. Cheroso quer ser herói.

Ouvindo: Da Weasel - Dialectos da Ternura

Monday, January 10, 2011

O doce veneno que me levará pra longe daqui

Enfim encontrara a passagem que o levaria direto para o inferno, sem escalas, sem serviço de bordo, sem recepcionista nem fila de espera: cairia direto no colo do capeta, sem enrolação.

Havia dois meses que a ideia era fixa - aparecia na privada, na cama, estivesse só ou acompanhado, atrasado ou bem humorado: precisava morrer. Não era só um querer, era uma necessidade, tanto pra ele quanto para o mundo.

Era um homem de inquitações infinitas, mas a coragem era uma virtude que ele desconhecia. Ousado até chegara a ser vez ou outra, mas corajoso, jamais. Tinha medo até de gato filhotinho. Era um medricas.

Passou os dois meses recitando alto em sua cabeça: preciso morrer, quero morrer. Só o fim é minha salvação. Preciso morrer, quero morrer, só o fim.... E a ladainha ressoava o dia todo em sua mente.

Era um homem sozinho - o medo o impedia até mesmo de arrumar uma samambaia que alegrasse a sala da kitnete. A kitnete ficava no 1º andar - não que ele respeitasse o shabbat ou coisa assim. Era medo mesmo e o prédio não tinha apartamentos no térreo, que é bem mais seguro.

Sua passagem para o inferno estava diante de seus olhos, em cima da mesa, em frente à qual já estava sentado há duas horas. Fita o seu veneno, bilhete-só-de-ida dessa para melhor. Orgulhava-se da sua genialidade enquanto lembrava da chinelada que tomara na mão quando um dia tentou envenenar-se inocentemente com aquilo que hoje seria sua salvação.

Nada mais sublime que o doce veneno. Açucarado, até. Aquilo sim dava coragem de fazer. Só restava saber como: misturar os dois? Um de cada vez? Pegou na faca e começou a arranjar a manga, depois de decidir-se que tudo se misturaria no copo do liquidificador. Meio copo de leite, duas colheres de açúcar. Sempre fora um "formigão".

Liga na tomada, bate. Pronto. Senta-se novamente à mesa e bebe com gosto o veneno que o levaria para os braços de Satanás e longe dessa tortura que é viver. Passou três horas esperando pelo efeito mortal da manga com leite antes de começar a blasfemar. Nunca mais tomou leite, nunca mais comeu manga. E o pensamento insistente ainda habita sua cabeça, quiçá para sempre.

Ouvindo: AC/DC - Ride On