Thursday, August 11, 2011

O desfalcado

-  E aí, Rick, bora jogar bola?
- Pô, o Rick pode ir hoje não, tá desfalcado...
- Como assim? Tá doente? Que aconteceu com ele?
- Tá desfalcado hoje, vai dar pra ele ir jogar bola não...
- Pô, mas ele tá aí? Tá machucado?
- Vai dar pra ele hoje não. Mas somos de boa, a gente é do bem. A gente vai devolver tudo as coisas pra ele... Avisa isso pro Rick quando cê conseguir falar com ele, firmeza?

Difícil falar com assaltantes ao telefone, ainda mas quando finge-se não saber de nada.

Tu-tu-tu-tu.... Desliga o telefone. Voltemos 15 minutos na cena. Toca a campainha. De bermuda, meião erguido e tênis de jogar bola, espera Rick na sala de casa. Cadê a chave? Deve estar lá em cima. "Peraí, Rick, tô indo". Sobe a escadaria, nada de chave. Confere o bolso do casaco, tá lá. Desce de novo, apressado, rumo à porta. Faz menção de abrir, mas ouve a voz de Rick e concentra-se no diálogo:

- Seguinte, mano, dá tudo aí. Dá o celular. Dá a carteira.

- Cadê o carro, mano?

São dois. Calmos. Imagina-os discretos, de jaqueta sintética e tênis de corrida. Imagina porque não pode vê-los, o portão de madeira só permite que o assalto fosse testemunhado de ouvido. A tensão aumenta. Abrir a porta? Gritar? Pegar o pedaço de pau ao alcance da mão esquerda e ver o que o espera lá fora? Gritar? Correr? Chamar o Rick, como quem não quer nada? Aí os caras entram em casa... Dão um tiro no Rick. Dão um tiro em mim. Ou saem correndo, assutados. Bora pegar esse pau e por esses maluco pra correr... Todos os pensamentos passam por sua cabeça em exatos 15 segundo, tempo para o diálogo que ouve à porta de casa.

- Cadê o dinheiro, mano?
- Tem nada não, só os documentos, tá aí, ó.
- E o carro, cadê o carro?
- Ta aí a chave.
- Ô chega aí no carro com nós então, chega, chega.

São as últimas palavras que ouve. Levaram Rick pra um passeio, essa certeza tomava conta de sua cabeça. O silêncio dá mais peso às pernas, que tremem discretamente. Suas pernas sempre tremem em situações extremas. Telefone. Polícia. 190 ao seu dispor. Mas você está vendo ou ouvindo? Ouvindo (que diferença faz?). Tudo bem, vamos mandar averiguar. 40 minutos depois chega a viatura, um cabo desce olhando-o com olhinhos de me come. Foda-se. Devia ter ido até a pizzaria ver se juntava uma turma de PMs na pilha de uma sobremesa. Telefone toca. Rick: cara, tô bem. Saí correndo. É, foi quando o cara da arma foi pro carro, vazei. Pois é, nem pensei em nada na hora. Só vazei. 


Sorte.

Ouvindo: Leo Canhoto e Robertinho - O Homem Mau

Thursday, August 04, 2011

A verdadeira história de Jesus de Nazaré - parte 2

Pouco depois de performar seus primeiros milagres - a transubstanciação e a multiplicação dos peixes - Jesus de Nazaré sentiu-se, pela primeira vez em sua vida, um cara verdadeiramente especial. Com a força de seu pensamento julgava poder fazer tudo o que imaginasse.

"E se eu tranformasse esse deserto em rio? Meter umas sombras, árvores com frutas e os caraio", pensa sozinho enquanto seus seguidores fazem sua função: andar atrás de Jesus arrastando suas túnicas em farrapos e aguardando as próximas mágicas que sairiam da cartola do nazareno. Como das primeiras vezes, bastou pensar e o milagre estava feito: sombra, árvores, frutas, bichos fofinhos e muita água corrente cercavam seu caminho.

E a vida de Jesus foi seguindo. Muito além dos 33 anos que sua biografia retratou, aliás. A cada dia que passava, Jê ficava mais orgulhoso de seus milagres. E a soberba não demorou brotar em seu coração.

- E aí, Jesus, firmeza, irmão? Sabe qualé, tava bem afim de arrumar uma namorada, jantar com ela e tal, sabe como é né?

- Pô, Iscariotes, você pede demais. E eu não sei como é porra nenhuma - apesar de todos seus poderes, Jesus nunca tinha experimentado da costela de Adão.

- Não rola mesmo, Jê? Quebra essa aí, vai?

- Toma logo, então, caralho!

Um harém coberto por uma tenda, decorado com as mais nobres sedas e louças e habitado por 11 virgens à espera de Iscariotes, brotou no meio do caminho.

- Aê, Jesus, cê é o cara mesmo, hein? Judas agradece e logo dá as costas ao mestre, erguendo a túnica enquanto corria para dentro da tenda.

- Fodam-se vocês. Vocês que se virem com esse pedição do diabo. Eu tô de boa, vou seguir meu caminho sozinho.

E assim foi. Deu as costas aos seus 13 asseclas e saiu perambulando sozinho por aí. Logo aborreceu-se com a solidão e passou a falar sozinhos, com os animais e mesmo com as pedras. Um coelho que passava ao seu lado ficou curioso enquanto Jesus falava com uma família de galinhas:

- Aê, Barba, tá doidão, rapaz? Falando com galinha?
- E você, branquelo, quer o que?
- Nada não, mano. Só que galinha é meio besta, ruim de ideia, né?
- Tô vendo. Já você é bem malandrão, né?
- Que é isso. Sou só um coelho qualquer falando com um tiozão cabeludo.
- Quer bater uma aposta comigo, coelhinho?
- Pô, até que é umas, né?
- Tá vendo aqueles ovos ali?
- Tô sim, que que tem os ovos?
- Tranformo essa porra toda em chocolate, duvida?
- Hahahahahahaha - o coelho se perde numa risada infinita.
- Tá rindo de que, otário? Transformo esses e todos os ovos que estão na face da Terra em chocolate, duvida?
- Duvido. Duvido pra caralho.
- Tá apostado?
- Tá sim, pode botar fé - o coelho responde confiante.
- Então toma, mané!

As galinhas saem de cima de seus ovos, esvoaçando com todas as suas forças. Não reconhecem seus ovos, agora pretos e grandes (todos os ovos foram tranformados em chocolate ao leite, nº 16). Fogem desesperadas, o que combina com o olhar embasbacado do coelho.

- Porra, como você fez isso, cara?
- Te interessa? Perdeu a aposta, imbecil. Agora você vai pagar.
- Pode crer. Como eu faço?
- Vai entregar ovo por ovo na casa da criançada. E vai fazer isso todos os anos, lá pelo fim de março, começo de abril. Quando você acabar de entregar tudo, me procura que eu te descolo mais ovos.
- Puta, me fodi.
- Pois é, coelho. Quis ser malandro, não quis? E ó: tô de olho no teu trampo, hein?

Saindo dali, Jesus avista um senhor gordo e barbudo, todo grisalho, vestindo uma estranha combinação vermelha e botas de couro. Não hesita em propor:

- Aê gordo, cola aí. Tá afim de uma aposta?

Ouvindo: Zebda - Motivés

Tuesday, August 02, 2011

Conto do vigário

-Olha, olha, minha gente, mas tem que ter o olho vivo! Quem quer jogar?

O homem veste roupas normais, além de ter uma cara normal. Salvo pelo olhar. É um olhar doce e convidativo, de quem tem certeza do que está fazendo. Tem uma banquinha de madeira leve, coberta por um pano roxo. Três copinhos e uma minúscula bolinha de madeira complementam seu ambiente de trabalho.

-Eu quero!

A velhota usa roupas sóbrias, tem os cabelos bem cortados e tingidos e um par de óculos cor de âmbar. Seu olhar é inocente e também muito convidativo.

-Então fica atenta, minha senhora, que o jogo vai começar. Atenção, atenção, não tire os olhos da bolinha.

Mexe que mexe e troca e troca os copinhos de lugar, numa velocidade incrível. Mesmo assim, para os mais vivos, a bolinha nunca some do lugar.

-Olha lá, vai parar, sabe onde tá a bolinha? Atenção, só mais um pouquinho, pronto.

Levanta as mãos e a cabeça, agora olha em silêncio para a velha. Seu olhar é desafiador. Permanece calado.

-Na do meio!

A velha responde, mal contendo a empolgação de ganhar 50 contos assim, tão fácil. Tinha certeza absoluta: ganhara.

-Vamos lá, vamos ver... É isso mesmo! Bravo!

A velha comemora em silêncio, com um sorriso que deixa mais da metade de sua dentadura à mostra. Pega o dinheiro, guarda em sua carteira e permanece ali, ao lado da banca.

-Quem mais, quem quer jogar? Tão vendo como é fácil? Eu tô ficando velho, não consigo mexer com tanta velocidade. Quem joga comigo, vamos lá? Mas tem que ficar de olho na bolinha!

-Eu!

O passante tem cara de quem não é dali e tem o olhar confiante dos espertos. Passou os últimos 15 minutos observando o jogo e tinha certeza que seus olhos eram mais rápidos que a mão do mestre do jogo. Aposta 50 contos, assim como a velhinha.

-Então olho vivo, meu rapaz. Não tire os olhos da bolinha. Vamos lá!

Mexe, troca, gira. E fala sem parar.

-Atenção, vai parar. Tá de olho? Vou parar, olha lá, só mais um pouco, atenção...

Levanta o olhar desafiante em direção ao apostador e espera em silêncio.

-Tá na esquerda.

-Essa esquerda aqui?

-Essa mesmo.

O apostador fala convicto. Certeza de ter batido as mãos do banqueiro com a sagacidade de seu olhar. Levanta-se o copo. Não há bolinha. O homem vira-se e caminha cabisbaixo, imaginando que, talvez, tenha sido vítima de um golpe. "Mas até a velhinha ganhou", pensa. "Nossa, até a velha tava no esquema", lamenta-se em silêncio, com as mãos nos bolsos, mais vazios que outrora.

Ouvindo: Rappin' Hood - Rap do Bom