Wednesday, February 24, 2021

O carnaval que nunca aconteceu

A melhor música de todos os tempos, perfeita pra pular carnaval, foi acidentalmente composta pelos Gipsy Kings. Volare, cantare. Introdução em solo de guitarra e canto: esse é o momento pra encontrar aquele par de olhos e, olhando profundamente dentro deles, cantar mais ou menos assim:

Pienso que un sueño parecido no volverá más
Y me pintaba las manos, la cara de azul
Y de improviso en el viento la vida me llevo
Y me hizo a volar en el cielo infinito

Seja eficaz, olhe com vontade de olhar, de criar contato, desejando. Pois a música não espera a tua vergonha e chega logo em sua segunda fase, a fase da catarse coletiva.

Volaré, oh oh
Cantaré, oh oh oh oh
Nel blu dipinto di blu
Felice di stare lassù

Nessa hora o povo todo dança coletivamente com as mãos pro alto, todos se misturam, se olham, sorriem. Vale até trenzinho. Agora teu par está no meio da multidão, presa fácil para outros desejos, outros carinhos acidentais e fugidios tais que uma mão que esbarra na outra, um ombro que roça um outro ombro anônimo, a mistura que agrada todo folião de respeito. Hora de recuperar aquele olhar, a fase três da canção, chave para que a dança continue até o fim num montante de tensão e cumplicidade. Os ciganos continuam. E tu também.

Y volando, volando feliz
Yo me encuentro más alto
Más alto que el Sol
Y mientras que en el mundo
Se alejó despacio de mi
Una música dulce
Tocaba solo para mí

Chegamos na fase crítica de Volare, o momento em que os olhares iniciados há exatos 1 minuto e treze segundos devem ter tomado uma forma magnética. Se não for o caso, hora de procurar o pesado mais próximo, abrir mais uma latinha e volatr algumas casas no tabuleiro. Se a atração atrai de maneira atraente, Paco Baliardo dá a deixa com um dedilhado de seu violão antes de Nicolas Reyes retomar o hino.

Pienso que un sueño parecido no volverá más
Y me pintaba las manos, la cara de azul
Y de improviso en el viento rápido me llevo
Y me hizo a volar en el cielo infinito

Agora é tempo de dar as mãos. Segure as duas mãos da pessoa, na altura da cintura e proponha, silenciosamente, uma dança a dois. Se tudo está bem, o mundo já desapareceu de vosso entorno e a única coisa no campo de visão do casal é o olhar do outro. Enlace a cintura do outro, enquanto o outro braço toma a posição básica de uma dança de salão qualquer. Dance. E cante baixinho enquanto teu olhar está atravessando os olhos do outro. Quando Reyes retomar o "volare", voltem para o mundo da multidão e pulem juntos, rodem, dancem. E retomem a dança a dois, e pulem, e rodem, e dancem. E aproveitem do tempo que parou para ver os dois. Se ainda houver dúvida, dance em volta do outro, como um cigano à beira do fogo, batendo palmas para o alto. Rode em volta, sorrindo, olhando. Ao chegar ao breque, 3 minutos e 37 segundos depois, pare. Olhe. Sorria. Aproveite.

Ouvindo: Gipsy Kings - Tu quieres volver

Wednesday, December 09, 2015

2015, o ano da pedra

Toma o ultimo gole da Heineken morna, amassa a lata bem no meio, faz 16 furinhos concêntricos enquanto fuma a grandes tragos. Furos prontos, recupera uma ou duas batidas de cinza bem no meio dos furinhos. Bota a pedra, inverte o isqueiro e dá a primeira paulada. Calça seu par de Doc Marteen's, calça de pular brejo, camiseta branca, suspensorios e uma boina cinza. Continua fumando a quimba do cigarro, cada vez mais pontuda e quente, assim como os olhos, que fervem. "2015 é o ano da pedra", sua fala em direção aos amigos ainda ressoa em sua cabeça a cada vez que queima uma na lata.

Começa a a subir a rua dos Italianos em direção à Luz, dando a tradicional quebradinha pela zona de não direito entre a José Paulino e a estação. Passa em frente uns botecos, lugar onde não entra. Malditos chineses e seus bares por demais iluminados, com os olhos pequenos de tanto jogar videogame. Eles comem baratas e, se eles comem baratas, a gente também come. E transam como ratos, aos montes de gente onde ninguém sabe onde termina cu e começa rola. Pau no cu desses chineses pensa enquanto resmunga e volta a olhar o chão como se fosse horizonte. Assim caminha o craqueiro.

Passa em frente a uma padaria, doze garrafas bem expostas na porta, cervejas com nomes que não querem dizer nada, coloridas, enfeitadas com ursos e cevadas. Rouba tres garrafas de passagem, esticando o braço. Olha rapidamente as três, que segura na mesma mão. Joga a primeira pra trás, por cima do ombro e a segunda espatifa no chão, com raiva, barulho e cacos por todos os lados. Alemã, essa porra de breja.

Abre a eleita com o isqueiro, primeiro objeto a prever quando começa-se um passeio pelo crack. Toma um gole grande, que tem dificuldades pra driblar a goela travada. Acende o cigarro, engole a segunda metade do gole e arrota. Stout, Bears' & Lumbers' Dream, duplo malte, cevada de primeira, torrefi... trorrefica... troreficação e aroma de meu caralho. Forte pra diabo essa porra. Bate mais cinza na lata, bota mais uma pedrinha pra tostar, tosse, fuma, coça a cabeça e solta a fumaça com força, esvaziando de vez os pulmões. Recomeça a andar e a resmungar sobre os chineses e seus videogames. Ouve uma voz anasalada e rouca ao mesmo tempo:

-Tem razão, eles fodem como ratos, todos embolados. E você, seu lixo? Ei, ei, queima-rosca, fumando pedra com o bolsa familia, arrombado?
- Ta me tirando, Jão? Tá achando que cê é quem?

Veste mini saia rosa, bem mini, saltos plataforma envernizados, muita maquiagem. Mede, no máximo, 1,20 m. Pernas grossas, que faz questão de manter peludas. Boca carnuda, ornada com batom rosa com purpurina nos lábios e uma verruga no canto inferior esquerdo. Uma aparição recém saída da Amaral Gurgel.

- Eu sou o diabo, filha da puta.
- Sai daqui, traveco do caralho.

Logo que o caralho saiu de sua boca, sentiu-a secar, a lingua dobrar, a gargantza inchar, o coracão acelerar a a respiração ameaçar parar. O traveco anão e capeta tinha uma única teta no meio do peito peludo e ainda guardava seus mamilos de outrora. O craqueiro tratou de acreditar.

- Você me chamou, agora vai ter que falar.
- Chamei nada...
- Chamou sim. "Stout, ursos e compania, torre.. torresmicada com café, glaglaglá, FORTE PRA DIABO. Chamou sim. Tava te acompanhando desde lá de cima e ouvi você chamar meu nome. Quer o que?

Aliviado depois que o capeta afrouxou a corda, tremia. O coração foi o único que não reduziu o compasso. Suor frio escorre por baixo da costeleta. Malditos desses chineses que fazem essas cervejas com bosta de urso e botam torresmo dentro. Aposto que tem baratas, certeza que tem baratas, eles comem baratas. E transam o dia todo, transam com a mãe, com a vó e com o pai, todos os dias até ficarem grávidos e fazerem um monte de chineses, que ficam jogando videogame até o olho ficar pequeno. E mesmo com aqueles pintinhos pequenos eles conseguem, imagina se tivessem uns pauzão. Malditos esses filhodasputas de chineses, que tem esses bares que piscam muito...

Sem se dar conta que reclamava em voz alta, ficou surpreso quando não viu mais o diabo, que havia anotado seu pedido. Tateia a lata guardada no bolso apertado da calça e acende mais um cigarro. Fuma a grandes tragadas pra fazer bastante cinza. Mais uma volta na roda gigante, é hora. Perambula durante a noite, a madrugada toda e vira o dia na pedra. Passa ao lado de uma banca na rua Newton Prado, onde não vê a manchete do Notícias Populares:

CAPETA SOLTO NO BOM RETIRO: CHINES ENCONTRADO MORTO RECHEADO DE BARATAS

Ouvindo: Roots Manuva - Dreamy Days

Tuesday, June 03, 2014

Festa do Inferno

Terra de ninguém. Quinze minutos atravessando o vinhedo nantês ao volante do caminhãozinho. O caminhãozinho, que carrega uma cozinha e litros de muscadet, vira em frente à esfinge do Looksor, que guarda o bar- única construção em alvenaria naquele lote. O resto ainda não saiu dos containeres, à execeção da roda gigante que ja ocupa seu lugar definitivo para fazer passear os festivaleiros do HellFest, em bom português, festa do inferno.

Nada como terra de ninguém para ressucitar uns mortos. Iron Maiden, Aerosmith, Slayer, Megadeth, sendo a lista não exaustiva. Os monstros do roque reunem-se nessa cidade cercada por uvas e garrafas que, juntas, fazem o Muscadet du Pays Nantais. Precisamos encontrar o responsável.

O campo, que 335 dias por ano é dedicado ao nada, é controlado pelos intermitentes do espetaculo, espécie em extinção formada por anormais, psicopatas, timidos; descoloridores de cabelo, tatuados e botinudos, todos muito gentis. O responsável chegou e dirige um quadriciclo fumacento, bermudas jeans que ja foram calças e coturnos azuis. Fala como quem tivesse acordado e lavado a boca com muscadet. "Eu tenho suas chaves". Obrigado, santo homem, mas esse cabelo ta meio feio.

O restaurante é o primeiro "prédio" que saiu dos containeres e foi montado com bastante lona branca, plastico e ferro. As portas estão abertas para uma temporada em que os intermitentes virão ocupar nossas mesas a cada meio-dia ou hora da janta. Entradas, saladas, frutas, carne, carne, peixe, carne; frango também. Doces, tortas, bolos, queijos; café e bolachas, sanduiches. Leitinho e pãozinho de manhã. E vinho - tinto, branco e rosado.

A lona abre e mostra o salão vazio que vai virar cozinha  assim que esvaziarmos o caminhãozinho - os caminhões eram três. Duas toneladas de material, de diferentes tamanhos, pesos, importancia e matriz energética cabem em três caminhões - dois deles poderiam ser confundidos com vans, mas o ultimo era um caminhão por certeza. Desce a chapa, desce o forno; empurra a geladeira, cuidado com o fogão; traz a pia mais pra cá, bota o lava louças pra trás. Cuidado com o fio, olha o dedo, porratápesadopácaralhoessaporra. Em uma hora de trabalho conta-se 5 pessoas para descarregar três caminhões. Tudo isso para cozinhar para monstros e intermitentes.

Com as mesmas 5 pessoas é preciso mais 1h30 para botar tudo em seu devido lugar e criar a cozinha que vai fazer comer até 600 pessoas por serviço em seu auge, assim que todos os fornos, chapas e fritadeiras estiverem quentes o suficiente para que os garçons, vestidos em camisa branca, possam bradar em frente ao barracão que os monstros poder vir todos tomarem seus lugares e uns copos de muscadet e:m nossa espelunca.

Tudo esta em seu lugar e espera pela volta dos intermitentes em seus quadriciclos para que cada elemento da cozinha crie raiz. Deixamos o "cuidado pra não dar curto-circuito" e o "bota uma espuma de sabão pra ver se o gás ta vazando" praqueles caras. O responsável volta, um homem sem nenhuma decência e temor ao julgamento, corte de cabelo manga chupada, tingido de azul. A parte sem cabelos é tatuada de um tribal que dá a volta ao globo. O responsável garante: amanhã tá tudo conectado. Monta o veículo da festa do inferno e parte deixando poeira em terra de ninguém. Fico a esperar os monstros.

Ouvindo: Underworld - King of Snake

Thursday, January 19, 2012

Pessoas são eternas; ja os diamantes...

Julião Pestana acorda, como todos os dias ha muito tempo, às 6h da manhã em sua cama de solteiro. Não se lembra ha quanto tempo chegou a um acordo com Dona Aparecida para que cada um dormisse tranquilo em seu canto. Veste-se como ha muito tempo: calças sociais, tenis de corrida - aqui cabe um parenteses, sao os tenis mais modernos e baratos que se podem encontrar no mercado francano. Toma certo tempo para passar a cinta em volta da barriga para dar mais sustentaçao à hernia que acompanha-lhe ha um tempo que nao conta mais. Veste a camisa. Falta um dia para completar seus 90 anos.

Nunca soube ao certo a idade de meus avos. Quando criança, Juliao sempre dizia ter "mais de 200 anos", o que rendia risos e descrença na cara dos netos. Agora sei que ele é normal, tem apenas 90 anos - o que se pode notar pelo tamanho de suas sobrancelhas e pela sabedoria de seus conselhos. Tudo o que sei sobre mulheres (e o amor, consquentemente), foi Juliao quem me ensinou. Ensinou tudo que eu sei sobre pipas, fazer a cola na panela,  cola que ele chamava grude. Ensinou-me que as duras mais severas fazem parte de amar. Ensinou-me que a distancia é algo pouco importante quando se ama alguém, pode-se cultivar e cativar pessoas com uma simples palavra, mesmo que anos e muitos quilometros as separem.


Por que perco-me em essas lembranças? Quantos anos tinha a vo Bianda quando ela resolveu deixar essa terra? Nao sei, perco-me simplesmente em lembranças, as quais invento e adiciono detalhes, apago desgotos e apego-me aos sentimentos que meus avos fizeram brotar. Se hoje gosto de cozinha é tudo culpa da Dona Sebastiana, que topava qualquer parada e resolvia tudo com suas panelas e seu jeito despachado de receber e servir. Se hoje tenho esse jeito besta de rir de quase tudo e de sorrir ao ponto de parecer imbecil, devo a vo Picida e ao seu jeito unico de cobrir a boca enquanto ri timidamente depois de qualquer gracejo.


Pessoas vivem pra sempre, não importa o que aconteça. Vivem dentro de mim. Mesmo os amigos mais distantes, mesmo quando seus rostos, vozes e cheiros são fugidios em minha memoria, guardo a esssencia, o sentimento, alguma palavra, o ultimo sorriso, o ultimo abraço que tive: fazem parte, sao o que sou. Mesmo que tenham mais de 200 anos. 

Juliao toma seu café pausadamente, café forte e doce de receita marcada na leiteira pela força do uso. Bota seu aparelho auditivo e caminha calmamente em direção à sala de estar para buscar seu jornal. Amanhã é seu aniversario. O mais estranho é que ainda faltam muitos anos para que meu avo chegue à idade em que o conheci. Duvido muito que ele chegue aos 220 anos, mas, dentro de mim, vive a eternidade. Julião nunca tocou um diamante.

Ouvindo: Noir Désir - Le Vent Nous Portera

Friday, October 21, 2011

Lembranças que eu tenho de lá

Te echo de menos, le digo al aire,
te busco, te pienso, te siento
diciendo que como tú no habrá nadie.
Y aquí te espero, con mi cajita de la vida,
cansada, a oscuras, con miedo
y este frío nadie me lo quita. 

(Bebe - Razones)


O plano é partir para Franca amanhã, logo pela manhã. A cidade ondei deixei para trás as primeiras caixinhas de vida. Lembranças, mesmo que muito vagas, ainda me comovem: o sotaque, o jeito inconfundível de dizer 'tií e fií' no lugar de tio e filho, a visão da mufa épica de Papa Tony's - o lugar onde comi meu primeiro dogão. Caio, Roberto, Roberta, Jonas, Douglas, Rogério, Tatiana, Mariana - aquela pra quem mandei as mais desesperadas e, literalmente, infantis cartas de amor - Pâmela, Vinícius, Ana Paula. Hoje escrevo seus nomes em um blog à medida em que me vêm à mente. Mas são só nomes que tenho na cabeça. Não há mais a lembrança de fato, tampouco o desejo de revê-los.


Rodrigo, tá aí um cara que me ensinou a rir da vida e de mim mesmo. Ria do rangido infernal que o FIAT 147 de meu pai fazia quando freava a fundo. Ria alto, zoava e fazia todos rirem. Filho de negociantes - seria um mercado que Dona Regina chefiava? Não sei, lembro mais dele chegando na pracinha e mandando, em alto e bom som, enquanto olhava pra mim: 'tã nã nã nã nã nã nã nã nã nã... Johhhhn Cabeeeeça'. Mesmo sendo endereçada a mim, era tão engraçado que eu mesmo ria do tosco apelido.


Outros apelidos vieram: Cabeção, Formiga do Planalto - o bairro francano, onde aparecem formigas que fazem deus questionar sua habilidade. Chernobil, da primeira vez que raspei a cabeça. Desse, não consegui rir. E outros mais vexatórios apareceram, mas sempre dei meu jeito de rir junto com o pessoal. Desde o tempo em que era o Ferruginha, em outra pracinha. Sempre apareciam os apelidos, principalmente na pracinha Santo Antônio, na Cidade Nova. E o mestre das alcunhas atendia pelo melhor vulgo da época: GT.


GT era o proto-marginal, daqueles que dão pinta desde adolescente de que não estão nesse mundo para contentar-se com regras. De família amalucada - um de seus parentes chamava-se Billy e sua irmã era a Cléa, conhecida por lá como Créia (era como a trissomia do 21 a incentivava a dizer seu nome). E muito aprendi com GT, como me virar na rua, como entrar nos lugares mesmo não sendo bem vindo e, o mais útil de todos - como saltar moitas enormes daqueles espinhos que o povo chama de 'coroa de cristo'. Na verdade, nunca fui muito bom nessas coisas de pular. Nem moita, nem muro. Por onde andaria Fabício, o GT?


Nessas andanças por ali, fiz uma dívida eterna com o meu melhor amigo, vizinho de frente da vó. Bocão, conhecido pela família como Diego, tinha a boca em que cabiam, contadinhas, 6 bolachas Maria. Gente boa até o último, tirando o fato de ele gostar de molhar o pão no café, que tomava de canecadas. Um dia, em meio às nossas reflexões pelas ruas da vizinhança, prometi inocente: 'ó, Bocão, um dia eu vou te dar um carro, vai ser um Opala'. Sempre que me lembro - esse é um dos quais o rosto de criança me vêm à mente - penso em saldar minha dívida. Foda vai ser achar um Opala, bege, igualzinho ao de seu tio Zeti. O Zeti tinha marca de bala e de facada na barriga, inchada de cachaça.


E a Edinéia? (nesse ponto, você leitor já deve estar cansado de rir de tantos nomes e apelidos, pois não?) A Edinéia era irmã do Érmisso, que fora batizado Emerson, filho do tiozinho que era lixeiro e que morava nos fundos da casa do bocão. Foi com a Edinéia que fui atrás de um Fusca bege, estacionado em frente à casa da vó e lasquei-lhe um beijo. Beijinho, curtinho, estralado, mas, que importa se tão furtivo? Foi o primeiro. 


Por onde anda essa gente? Ainda tenho parentes na cidade, mais de vinte, aliás. Um dia, depois de muitos anos sem aparecer por lá, fui ao mercado e queria comprar presunto, queijo e afins. Fui atendido por um jovem bastante cortês, de olhos azuis claros bastante familiares. Um reencontro dividido por um balcão resfriado, lá estava Douglas, o Tuca-Tuca, vizinho de muro da rua de baixo - eu morava num corte no morro com vista pra boa parte da cidade. 'André, você, quanto tempo, que tal, tudo bem, bem e você, faz tempo, né, e aí, como tá a família - a irmã dele salvou-me do meu primeiro desmaio, quando caí da goiabeira de sua casa e seu rosto de anjo salvador olhado de baixo pra cima ainda tá guardado em uma caixinha. 'Então é só isso, obrigado, obrigado a você, um dia a gente se fala, um abraço, pra tua mãe também'. 


Por onde anda Diego, o Bocão? Dias atrás, minha tia encontrou-o na rua, moleque crescido, sujeito homem, se virando com seu irmão de criação depois que a Gracinha morreu. Gracinha era a mãe do melhor amigo, carinhosa pra caralho, criou o Bocão sozinha e ainda pôs o Bruno embaixo da asa quando a Mariley morreu. Preciso apressar-me para achar um Opala, juntar um troco e saldar minha dívida. Pagaria o mundo para poder ver seu rosto agora, aquela boca onde hoje devem caber mais de uma dúzia de bolachas. Se não levar o Opala, ao menos recupero mais essa caixinha de minha vida que está perdida por aí. E refaço minha promessa, a qual um dia vou cumprir: um Opala bem bonito. Ferruginha e Bocão dando um rolê na Avenida.  Já pensou?


Ouvindo: Iron Maiden - The Sign of the Cross

Thursday, October 06, 2011

O sótão e suas lembranças

A primeira coisa que deve-se pensar quando de uma mudança: caso haja um sótão na casa, uma corda é necessária. Imprescindível, na verdade. Assim como abrir as janelas do sótão horas antes de ocupá-lo com a missão de retirar dali tudo o que não seja uma bagunça eterna; tipo de coisa que ali permanece até que a casa seja um monte de entulhos.

Nunca imaginei morar em uma casa com sótão. Qual seria a serventia de tal cômodo? É certo que não cheguei a morar ali, dormir todos os dias, pagar umas contas e tudo mais que faz com que você seja morador, não visita. Mas descobri que, dentre as utilidades de um sótão podemos citar: guardar caixas d'água e restos de construção - aqui queria entender por que tem-se dó de jogar todas as sobras na caçamba ou mesmo doá-las para quem daria mais serventia ao material.

Serve também para ser um local quente em dias de calor e gelado em dias frios. Caso o morador aprecie extremos, tá ali um cômodo aconchegante. E a principal função: estocar de maneira quase definitiva aquilo que você nunca mais vai usar. Exames médicos, diplomas da pré-escola, cadernos velhos, tudo cabe em um sótão quente e espaçoso.

Por serem as ideias fugidias, assim que pensares na corda - extremamente necessária para o caso de mudança em uma casa com sótão - lembra-te de pegá-la: a corda será a tua salvação. Com a corda em mãos, subo a escada estreita, daquelas de filme, que se escondem no teto e devem ser puxadas com uma elegante corrente. Na falta de uma corrente, improvisa-se bem com uma pá de pegar cinzas. Quente. Por que não ter aberto as janelas antes? Enquanto penso, o suor escorre pelo rosto. Era dia de fazer a barba. Sem tempo, ela só ajuda a aumentar a sensação de lugar mais quente do mundo.

Após breve análise, temos um diagnóstico: são 6 caixas grandes de papelão e a maior parte delas era caixa só no nome, não mais apropriadas para carregar qualquer coisa. Entre livros, radiografias, eletrocardiogramas, cadernos, enfeites de natal, correspondências, lembranças, livros - de todos os tipos, diga-se, desde a Teoria do Basketball ao Código da Vinci - encontro muitas traças, que saem apressadas e sem saber pra onde ir quando veem luz depois de tanto tempo.

As coisas ali não tem mais dono. São da casa. São do sótão, na verdade. Os moradores já retiraram todas as suas coisas de dentro da casa. Pelo menos é assim em suas cabeças. Suor constante, que, de tão constante, não me incomoda mais quando escorre pelo rosto. A corda. Ainda bem que eu achei essa corda, viu? Quando criança sempre gostei de nós, dos quadros com todos os tipos de nós do mundo, mas nunca consegui reproduzir nada além do nó cego. É hora de aprender, na marra mesmo. Enrola daqui, aperta de lá, tudo muito seguro.

Ajuda aí embaixo! Pronto. Devolve a corda. Olha esse caderno, olha esse álbum de fotografias. Vejo coisas que tem valor pra mim no meio da bagunça toda. Roubo do sótão alguns de seus tesouros. São meus novamente, alimentarei as minhas próprias traças com eles, ocuparei outros sótãos e caixas velhas. A sacola - outra ferramenta essencial em uma mudança é uma sacola resistente com boas alças - sobe de volta ao sótão. Quem diabos guarda um raio X de 1998? Tem coisas que só quem tem um sótão em casa sabe explicar.

Ouvindo: AC/DC - Shake a Leg

Thursday, August 11, 2011

O desfalcado

-  E aí, Rick, bora jogar bola?
- Pô, o Rick pode ir hoje não, tá desfalcado...
- Como assim? Tá doente? Que aconteceu com ele?
- Tá desfalcado hoje, vai dar pra ele ir jogar bola não...
- Pô, mas ele tá aí? Tá machucado?
- Vai dar pra ele hoje não. Mas somos de boa, a gente é do bem. A gente vai devolver tudo as coisas pra ele... Avisa isso pro Rick quando cê conseguir falar com ele, firmeza?

Difícil falar com assaltantes ao telefone, ainda mas quando finge-se não saber de nada.

Tu-tu-tu-tu.... Desliga o telefone. Voltemos 15 minutos na cena. Toca a campainha. De bermuda, meião erguido e tênis de jogar bola, espera Rick na sala de casa. Cadê a chave? Deve estar lá em cima. "Peraí, Rick, tô indo". Sobe a escadaria, nada de chave. Confere o bolso do casaco, tá lá. Desce de novo, apressado, rumo à porta. Faz menção de abrir, mas ouve a voz de Rick e concentra-se no diálogo:

- Seguinte, mano, dá tudo aí. Dá o celular. Dá a carteira.

- Cadê o carro, mano?

São dois. Calmos. Imagina-os discretos, de jaqueta sintética e tênis de corrida. Imagina porque não pode vê-los, o portão de madeira só permite que o assalto fosse testemunhado de ouvido. A tensão aumenta. Abrir a porta? Gritar? Pegar o pedaço de pau ao alcance da mão esquerda e ver o que o espera lá fora? Gritar? Correr? Chamar o Rick, como quem não quer nada? Aí os caras entram em casa... Dão um tiro no Rick. Dão um tiro em mim. Ou saem correndo, assutados. Bora pegar esse pau e por esses maluco pra correr... Todos os pensamentos passam por sua cabeça em exatos 15 segundo, tempo para o diálogo que ouve à porta de casa.

- Cadê o dinheiro, mano?
- Tem nada não, só os documentos, tá aí, ó.
- E o carro, cadê o carro?
- Ta aí a chave.
- Ô chega aí no carro com nós então, chega, chega.

São as últimas palavras que ouve. Levaram Rick pra um passeio, essa certeza tomava conta de sua cabeça. O silêncio dá mais peso às pernas, que tremem discretamente. Suas pernas sempre tremem em situações extremas. Telefone. Polícia. 190 ao seu dispor. Mas você está vendo ou ouvindo? Ouvindo (que diferença faz?). Tudo bem, vamos mandar averiguar. 40 minutos depois chega a viatura, um cabo desce olhando-o com olhinhos de me come. Foda-se. Devia ter ido até a pizzaria ver se juntava uma turma de PMs na pilha de uma sobremesa. Telefone toca. Rick: cara, tô bem. Saí correndo. É, foi quando o cara da arma foi pro carro, vazei. Pois é, nem pensei em nada na hora. Só vazei. 


Sorte.

Ouvindo: Leo Canhoto e Robertinho - O Homem Mau