Wednesday, March 28, 2007

Um pedido para daqui a três dias

Era preciso fazer um pedido, por escrito, detalhado, carimbado e com todas as outras burocracias pensáveis. No pedido deveria constar, em não mais de uma linha escrita com letra de imprensa, um único pedido ao sair da cadeia. Faltavam três dias apenas, mas parecia que o dia nunca chegaria. Pegou no papel, dobrou, amassou, tentou escrever qualquer coisa. Comeu a mesma comida insossa que engolia há 4 anos naquela mesma cela que dividia com malucos que se chamavam desde José, João e Felipe até Fedô, Casquinha e Relaxo. Três dias, como é possível que três pequenos dias demorassem mais que quatro malditos anos trancados naquele cubículo?

A cada hora pegava novamente no maldito papel e imaginava o que escreveria para encher aquela decisiva linha. Imaginava a felicidade que o esperava dali a pouco, mas a indecisão comia-o por dentro. Será que um carro? Dinheiro? Dez prostitutas? Pó a perder de vista? Um oitão pra voltar logo pro crime? Meia hora para os guardas voltarem com o papel para a direção. Sem papel preenchido, sem rua no sábado. Aliás, sábado era o dia perfeito para ser feliz mais uma vez, respirar um arzinho mais puro, rir sem medo de qualquer coisa. Sem mais pensar, preencheu o papel com letra firme e decidida, segundos antes do guarda chegar.

- Cariño? Que merda é essa?
- É meu pedido, caralho. Pode ser isso?
- Sei não, tem que ver com o Diretor.

Faltam só quase dois dias e ele anda de um lado para o outro em sua cela, a esperar a resposta do Senhor Diretor.

Ouvindo: Lovage - Sex (I'm A)

Tuesday, March 13, 2007

Como seria esse blog, se eu fosse...

...uma patricinha que fala "miguxo"
Não, meu, preciso contar, fui parar na delegacia, meu. Tá certo que foi com o mega fofo do ... , mas passei o maior carão lá. É que a gente tava na casa da vizinha, que mudou do prédio há duas semanas. E a gente achou que era, tipo, sussa de ficar lá na boa. Aí a coisa foi indo, né... A gente foi passando de cômodo em cômodo, mas quando chegou na cozinha...

...um escritor de contos eróticos
... o chão frio aumentava a frequência de arrepios que ... sentia. Sentada sobre seu peito oferecia a vagina úmida e cheirosa, fazendo um vai vém provocante com os quadris. Finalmente ela cede e oferece o prêmio a ... , que afoga-se em prazer. Saciado, toma o controle da situação e sai de baixo da mulher, que pega agora de bruços. Ela, com olhar manhoso, logo levanta as ancas e pede: "Me come de quatro e me puxa o cabelo?". O melhor pedido do mundo, se não fosse o barulho da porta da sala...

... um colunista policial de cidade do interior
Casal apanhado com a mão na massa pela vizinha. O casal ... , 24 e MM, 22, foram presos em flagrante por atentado ao pudor na tarde de ontem pelos policiais do 12º BPM. Os dois foram surpreendidos pela vizinha, que vinha acompanhada pela polícia. Os homens do sargento Tavares foram chamados para averiguar os barulhos que vinham do seu apartamento. Ao chegar ao prédio para retirar seus últimos pertences, Dona Antônia notou uma movimentação em seu imóvel e pediu ajuda policial. O casal seguiu envergonhado para a 3º DP da cidade onde foram interrogados pelo delegado Quintana. Os pombinhos seguiram livres para amar após o pagamento de fiança e respondem ao processo em liberdade.

... um maloqueiro
Mó treta, mano, fui parar na mão dos homem por quase nada, mano. Se fosse no rolê, fazendo umas treta, já era, tava de boa. Mas eu tava lá com minha mina na moral, dando um trato nela. Era só dominá a casa da tia lá do lado, mano, a véia tinha mudado do prédio fazia mó era já. Levei a mina pra dentro da casa, mano, ela ficou louca mesmo, tá ligado, mano? E o baguio é louco comigo, cê sabe, eu já fui indo em cada cômodo do apê prá comê ela, manja? A mina era tão cabulosa que ela perguntou se eu queria fazer uns baguio mó doido com ela, comer de quatro e tal... Foi daí que colou os homem, alguém caguetô a gente, eu tô ligado. Se eu acho que foi o cururu que me dedou, tá fodido, mano. Sorte que chegamos na delegacia e o doutor aliviou a dura. Ir pra cadeia numa dessa dá moral não, mano, ter que ser pego no crime.

... roteirista da novela das oito
O casal sai da delegacia e chama um táxi. O carro pára, ele sorri para ela e a abraça pela cintura. Ela levanta a perna esquerda. O motorista espera, os dois olham-se nos olhos.
- Adorei, sabia?
- Com você qualquer coisa fica bom, ...!
- E como vai ser daqui pra frente?
- Sei lá, acho que não vamos ser presos, aquilo era só amor, não se pode prender o amor.
- Não falo sobre a cadeia, falo sobre nós dois ...
Os lábios dela tremem, seu olhar passa para o chão e vêm o choro.
- Preciso ir, ...
- Fica, a gente pode ser feliz aqui.
- Sabe que eu não posso.
- Só um pouquinho, fica mais um poquinho.
O motorista de táxi pede uma resposta. Ela entra no carro, ele olha-a nos olhos.
- Vai embora - ela pede.
Ele vira-se e anda rua abaixo, sem olhar para trás. Fim do capítulo.

...eu
Não consigo mais esquecer daquele dia em que ela me deixou no Porto. Talvez alguns detalhes eu tenha misturado, contado em outras histórias ou sonhado em outras noites. Será que foi de táxi mesmo que ela foi embora? E aquele sexo escondido na casa da vizinha, seria em outras épocas, ou sonhos eróticos motivados por filmes vagabundos? Não sei, só consigo lembrar daquele último dia, o rio, as coisas em volta, as poucas pessoas na rua. E se eu seguisse aquele comboio que te levava pra longe de mim e ficasse perto de ti? Escondidinho, podia ser embaixo da cama mesmo. Juro que como pouco e não choro de noite.

Ouvindo: Ramones - Loco Live (o disco todo)

Das mais curtas pras mais longas....

Eu fui ver Taxi Driver pela primeira vez na vida hoje. Conhecia o filme "de vista", algumas falas e o resumo da história, um taxista que surta e resolve matar um ou outro cara. E é exatamente disso que o filme fala, não há melhor resumo, acho que o legal tá na simplicidade do enredo mesmo. Mas os diálogos e fluxos de pensamento de Travis dão o caráter fodão do filme. Vim, vi e gostei.

Nesse fim de semana contornei um de meus maiores medos culinários, comer sangue de animais. O prato é o "pica no chão", o que parece uma grande piada, mas é apenas o nome do frango caipira. Afinal de contas, o animal pica no chão em busca da comida. E o bicho vem acompanhado de arroz cozido em seu sangue. Confesso que não possui um bom aspecto, mas valeu a pena esquecer um pouco que aquilo era sangue e aproveitar o espetáculo de prato.

Li "O Abusado", de Caco Barcelos e agora leio "Falcão", de Celso Athaide e MV Bill. Os dois falam sobre o tráfico de drogas, o primeiro com enfoque em Marcinho VP e o Comando Vermelho e o outro mais sobre os soldados do morro. Encontrei uma intertextualidade muito louca nos dois livros, já que Caco Barcelos fala sobre Rogério Lengrueber, o Bagulhão, um dos fundadores do Comando Vermelho no presídio de Ilha Grande. Lendo Falcão, Celso Athaide dá um depoimento sobre sua própria infância, quando vendia doces nas ruas e lembra seu melhor cliente, Seu Rogério. Mesmo com diabetes, comprava o doce do moleque e ainda trazia freguesia. Seu Rogério, também conhecido como Bagulhão, foi vítima da diabetes em Bangu I e hoje suas iniciais fazem parte da sigla de toda a conversa e correspondência de sua facção criminosa: CV RL, mesmo que a maioria da nova geração do crime não saiba distinguir o significado das duas últimas letras.

Por último, rolou um churrasco de forno no apê de uns amigos dessas áreas. A churrasqueira elétrica (nessas horas eu sinto tanta falta de casa) tava estragada e as linguiças foram parar no forno. Sentados na mesa, pareciam todos dispostos como no mapa mundi. Em uma ponta, duas representantes da Turquia. O meio da mesa era dominado pelos polacos, duas garotas e um cara. O canto oposto era dominado por quatro brasileiros, que faziam fronteira com a Espanha ao norte, representada por um só. Concluí que somos todos iguais, podemos ir muito longe de casa, mas sempre encontraremos aqueles perfis parecidos com os quais convivemos aqui. Temos gostos parecidos, fazemos as mesmas perguntas e partilhamos os mesmo silêncios, uns com o cotovelo na mesa segurando o queixo, outros olhando para o alto, outros namorando o chão. Acho que deve existir um número finito de tipos de pessoas e elas se repetem pelo mundo com alguns detalhes e particularidades pequenas que não denunciem as cópias. Mas é justamente nessas singularidades que reside toda a graça de conhecer alguém.

Ouvindo: Guns & Roses - So Fine

Sunday, March 04, 2007

O homem de moleton preto e calças caídas

O homem corre pelas ruas já não tão frias e sente um sorriso brotando em sua cara mal barbeada devido ao vento que não mais lhe corta o rosto. Veste calças largas, que caem conforme acelera o passo. Fazer o quê se não gosta de cintos? Nem cintos nem relógios, era o que dizia desde mais moço. Veste um moleton preto com duas faixas brancas nas mangas, presente dos pais e que rendem a fama de Holligan por esses lados. Corre em direção ao Mc Donalds, procurando nos rostos e nos carros alguma visão familiar, buscando a cara do amigo que fora recém roubado. Logo encontra o dito, arruma as calças e checa sua proteção. Roubar um casaco é coisa que não se faz. Roubar, quando não se precisa do roubado, é coisa de grande filho da puta. Alisava a coronha de sua Taurus PT 58, presente de amigo e quase que um animal de estimação. Os ladrões de merda foram avistados e flagrados a guardar a porra do casaco no porta malas do carro. Dois moleques, ambos bem vestidos, dirigindo carro próprio e roubando as coisas alheias. Se tinha uma coisa no mundo que lhe fodia a cabeça era preibói forgado pagando de malucão. Gentilmente, afasta seu amigo do caminho com a mão no peito, logo interrompe os filhos da puta: "Boa noite, tô a passar um bocado de frio, será que não teriam um casaco por aí, não?" Com a negativa dos moleques, deixou a educação de lado, mas a calma nunca o abandonou. Colocou a mão nas costas mais uma vez e alisou seu bichinho. "Tens a certeza, seu caralho?" Mais uma negativa. Conhecia só uma lei nessa vida, a Lei do Cão. Não conhecia Deus, mas sabia que o Capeta existia e ficava feliz com as oportunidades de mandar mais um ou outro pras mão do Caramunhão. Sacou o revólver delicadamente, como se cuidasse de um pássaro doente ou tivesse um bebê prematuro nas mãos. Sempre nessa hora quem tá errado muda de atitude. Um filho da puta que era malandro há dois minutos parece um bebê. Tem o olhar assustado, olha pra todos os lados, talvez penando pra onde correr ou pra quem pedir ajuda. De nada mais adiantava qualquer coisa, estava agora nas mãos do homem de moleton preto e calças caídas. Mirou o capô do Polo preto e deu dois tiros. Era um vício que tinha desde moleque, nunca atirava um filho único, sempre mandava um par de tiros gêmeos. Um para encomendar a alma. O outro era uma oferenda ao Satanás. "Sabes fazer contas, pois não, puto? São 20 balas. Sobram 18?" A primeira resposta afirmativa do puto. Parecia que começavam a se entender. "São dois pra você, dois pro seu amigo. Ainda sobra algumas pra quando você vier me cobrar". Faz mira no peito do ladrãozinho, não gosta de apagar um cara de repente. Dá-lhe gozo atirar primeiro no peito, ao lado direito e depois manda o próximo balaço na barriga. Tem que ser rápido pra não dar tempo do cara se dobrar antes de levar nas tripas, mas a visão de um filho da puta sangrando pela boca é das melhores coisas da vida. Nessa hora vê-se nos olhos do corno o gosto que tinha pela vida, o arrependimento por qualquer cagada, alguns até chamam o pai e a mãe. Gosta de ver seu inimigo agonizar enquanto for possível e no íntimo torce pra que não morra e apareça um dia para cobrar as balas enfiadas em seu corpo. "Abre a porra do porta malas, seu moleque". O menino treme e nota-se que além de bambas, suas pernas estão todas mijadas. Soluça, mas não lhe correm lágrimas dos olhos. Pega na chave e dirige-se lentamente para trás do carro. Abre o porta malas. Nada além de alguns papéis velhos e sacos de supermercado vazios. Um engano. O puto não tinha nada a ver com a merda toda. "Desculpa lá, não tens mesmo um casaco pra me arranjar. Vamos pra outro sítio ver se achamos alguma coisa". O homem coloca o capuz de seu moleton preto e guarda carinhosamente sua PT atrás das costas. Dá um tapinha no ombro do amigo, convidando-o a irem embora. Caminham lentamente, sem olhar para trás. O vento gelado, que parecia ter ido embora, pelo menos até o próximo inverno, volta a soprar. O homem de moleton preto ajeita suas calças. Acredita fielmente que aquele vento gelado é o Capeta reclamando as almas que ficaram à beira de seu caldeirão.

Ouvindo: Ratos de Porão - Só pensa em matar