Passeando certo dia pelo youtube e vi o vídeo sobre um homem que supostamente está em uma sessão de fonoaudiologia. A fonoaudióloga fala a seguinte frase e pede para que o paciente repita:
"o jardineiro é jesus e as árvores somos nós". Parece simples, pois não? Vi o vídeo e me lembrei do Julão, um amigo meu que de repente desaprendeu a falar...
Acordou cedo como nunca tinha acordado. Foi ao banheiro, escovou os dentes rapidamente, só pra tirar o quente da boca, tirou as remelas, molhou o cabelo, bebeu uma água da torneira. Bateu uma vontade repentina de cagar, sentou no vaso, puxou uma revista e começou a tarefa inesperada. Enquanto lia sobre amenidades esperando seus momentos de rei chegarem ao fim, seus pensamentos se perdiam imaginando o almoço de domingo. Tradicional como deve ser, com toda a família. Mãe, pai, irmãs, vó, tio, tias gordas, primas chatas e a gostosa da segunda mulher do Quincas, seu tio mais novo. Quem mandou seu pai ter a maior casa da família? Quem mandou ele ser mão aberta e sempre bancar os almoços de família? Julão queria mesmo era ressacar na cama, ficar rolando até as 16h, sonhando meio acordado com as biscates que vira na noite anterior. Fim da tarefa, era hora de encarar a mãe, que sempre ficava uma pilha algumas horas antes desses eventos. Dona Lourdes vê o estado do filho, seus olhos esbugalhados, o cheiro de álcool e tudo mais que se nota em um boêmio, como ele gostaria de ser encarado.
-Que cara, hein Ju... Tava onde até agora?
-Tava na puta que o pariu!
Imaginem a cara da sua mãe se você responder uma coisa dessas pra ela. Agora imagina a cara da Dona Lourdes. Imaginou? Agora coloca um par de óculos de aro colorido, em forma de semicírculo, daqueles que viraram moda nos anos 90. Cara feia, né? Mas pior mesmo era a cara de Julão. Não era aquilo que ele queria falar. Queria responder simplesmente que "tava por aí, na balada" ou qualquer coisa do tipo. Mas não, saiu aquilo mesmo.
-O que é isso, moleque, tá louco é?
-Louco é o caralho, sua velha!
"De novo? Por que eu falei assim de novo? eu queria pedir desculpa. O que se passa comigo? Tem alguém aí dentro?", pensava ele com os olhos virados pra cima... Julão não conseguia falar o que ele queria, tudo saía da sua boca de um jeito estranho. Por mais que tentasse controlar, só conseguia falar coisas que vinham de impulso. Tinha perdido as rédeas, não estava mais apto para o convívio social. O que fazer com os parentes? O que ele ia falar quando a tia dizesse aquele famoso "você cresceu, hein Ju!" "É que a senhora ainda não viu meu pinto, sua puta!" Não, não podia falar aquilo. Tinha que ficar quieto, esconder-se embaixo da mesa, sei lá. Bico calado e na segunda-feira pela manhã acharia um médico que o curasse dessa coisa horrível. Deixou a mãe falando sozinha e correu pro quarto.
E foi todo mundo chegando. Chegou o tio César, com suas duas filhas chatas e sua esposa maquiada. Tio Roberto, solteirão e viciado em baralho. Tia Marina, 208 quilos balanceados entre gordura e chatice. Vovó e vovô, ambos fazendo hora extra na Terra. Tio Mário, advogado bem sucedido, com mulher, filhos e uma caixa de Viagra por semana. Julão tinha a vantagem de conhecer cada entrada e saída dos cômodos de sua casa e aproveitava para esgueirar-se pelos corredores evitando ao máximo qualquer encontro com os familiares. Comia o tempo todo para manter a boca suficientemente cheia pra qualquer um achar falta de educação se ele a abrisse. Somente meneava a cabeça, ora pra cima e pra baixo, ora prum lado e pro outro.
Tio Roberto foi o primeiro a conseguir interceptá-lo. Bonachão, de barba e bigodes grisalhos, daqueles tipos que fumam sem tirar o cigarro da boca:
- E aí, Ju? Tudo em cima?
(sinal de positivo com a cabeça)
- E como tão as mina, tá comendo alguém ou ainda não estreou a ferramenta?
(sinal de positivo com a cabeça)
- Tá comendo?
(sinal de positivo com a cabeça)
Julão conseguiu livrar-se do tio com alguma dificuldade depois de responder positivamente com a cabeça todas as perguntas que Roberto fazia, invariavelmente sobre a vida sexual do sobrinho. Continuava a andar pela casa, sempre enchendo a boca de queijo, salame e guaraná. Passou pelos mesmos apertos com suas tias, primas e avós. Mas conseguiu escapar de todos com a tática adotada. Só faltava uma pessoa pra enganar, Lucinha. Não era sua tia, pelo menos era isso que Julão achava. "Pra ser minha tia tem que ser irmã do meu pai ou da minha mãe..." Gostosa. Se fosse pra resumir em uma palavra, Julão diria que ela era uma gostosa. Peitão, bundão, pernão, cabelão, tudo ão. Sempre nutrira uma tara pela segunda mulher de seu tio. Várias horas trancado pensando nela, já tinha estado na cama com ela em todas as posições do kama sutra, em todos os continentes, vestida com todas as roupas. Pena que a imaginação logo ia embora quando Dona Lourdes começava a esmurrar a porta do banheiro.
Emcontrou-a na varanda que ficava nos fundos da casa. Ela estava fumando seu Charm escondida dos sogros, que abominavam tal vício. "Caralho, justo aqui tinha que ter alguém?" Julão tremia enquanto admirava seu vestido florido de tecido leve com tons castanhos. Tremia ao olhar suas pernas, seus lábios carnudos envolvendo aquele longo cigarro. Lucinha logo viu Julão e se assustou, colocando o cigarro atrás das costas e segurando a tragada até o último fôlego, mesmo sabendo que o "sobrinho" já tinha visto a "tia" fumando.
- Não conta pro vovô não, tá Ju?
(sinal de negativo com a cabeça)
- Você sabe como eles iam ficar furiosos, né?
(sinal de positivo com a cabeça)
- Se você prometer que não conta, eu te dou o que você quiser, pode ser?
(sinal de positivo com a cabeça)
- Então você não conta mesmo, jura?
(sinal de positivo com a cabeça)
- E o que você quer ganhar então?
Do alto de seus 19 anos, Julão suava, tremia e tentava tapar sua boca. E foi ali que seu plano acabou. Esqueceu-se que tinha desaprendido a falar. Respondeu o que veio em sua cabeça, vomitou a primeira frase que apareceu. Naquele dia várias coisas mudaram em sua família. Tio Quincas ganhara mais uma vez a fama de ser o maior corno do bairro. Julão ganhou o presente que pediu ali no dia, na hora, em pé, apoiados na cerca da varanda. Não foi ao médico na segunda-feira. Na última vez que o vi, soube, em meio a palavrões e coisas desconexas, que meu amigo estava trabalhando como roteirista nos livros de piada do Ari Toledo. Tempos e tempos depois, soube que ele procurou tratamento, que era mais ou menos assim, repete comigo:
"O jardineiro é jesus e as árvores somos nós."
Ouvindo: Raul Seixas - Quando acabar o maluco sou eu