Friday, April 29, 2011

Sobre curuiz, calaboca, cuspião e outras histórias

-Calaboca! Pega!

Falava sempre baixinho, fechando minha mão, bem maior que a dela, colocando dentro a notinha suada de 5 reais.

-É pra você tomar um sorlvete.

Falava sorlvete, como os mais cultos falam Marlboro. Falava 'cuspião' no lugar de escorpião. Falava que a barata viria 'lember minha boca' caso não escovasse os dentes.

Do alto de seu metro e pouco, com as costas curvadas pela vida, encantadora pela fragilidade, encantadora pela força e alegria inocente de viver.

Pouco estudara, o suficiente para escrever um cartão por ano, em português quase inventado. Sempre do fundo do coração.

Lembra-se sempre, e quando digo sempre, quero dizer sempre mesmo, de quando dava banho em mim. "Agora eu não consigo nem levantar uma perna sua". E ria que ria, sempre um riso alegre e contido com a mão à frente da boca.

-Curuiz!

Nunca disse 'cruz credo' ou coisa assim. Só falava 'curuiz'. E eu amando tudo isso.

Dói, por isso é hermético. Curuiz se você for embora agora. Fica.

Ouvindo: Ratos de Porão - Medo de Morrer

Monday, April 25, 2011

A ocasião faz o ladrão

Há mais de quatro anos no ramo, Vicente nunca havia ouvido um tamanho absurdo, um plano tão frouxo, uma certeza tão amadora de sua parceira:

- É só dar um jeito na parede e tamo dentro. Se eu conseguir fazer a cerca atravessar a parede, tamo dentro. É mole, Vicente, ajuda eu nessa. Eu nunca te deixei na pior, cê sabe, né?

- E você acha que é fácil assim de entrar? Caralho, isso que você propõe é mágica. 'É só fazer a cerca atravessar a parede'. Só. Só. Só isso, né?

- É, seu bobo. Atravessou a parede, tamo dentro. Aí é só aproveitar. Vai ser lindo. Ajuda eu, vai!

- E quanto você acha que rola com a gente lá dentro, Marina?

- Ah, sei lá, uns 10 conto. Fora o material que a gente vai usar pra entrar, né?

- Ajudo porque sou parceiro. Mas não boto fé nisso aí não. Atravessar parede?

- Fica tranquilo que disso eu me encarrego. Só preciso de uma mão pra pegar no pesado. Meio a meio. Topa?

- Tô dentro. Meio a meio, hein?

- Hein!

Uma semana depois, Vicente e Marina tem todo o material à disposição, muito tempo e total privacidade para começarem os trabalhos. Ela toma as rédeas e mete a mão na massa. Esforço, olhares desconfiados. Vicente não bota a mínima fé. Marina sabe que é questão de tempo até a mágica acontecer. Diante do olhar incrédulo do comparsa, Marina faz a cerca atravessar a parede e declara aquela obra de arte terminada. Virariam lenda, teriam seu nome escrito na porta daquele prédio. Vicente reconhece e elogia a coragem de Marina. Não é qualquer um que inscreve uma escultura dessas em um concurso de artes.

- Falei que a gente ia estar dentro? Falei?
- Pois é.

Ouvindo: AC/DC - Soul Stripper

Friday, April 15, 2011

Pra não dizer que não falo de amor

Trancados naquele quarto, eram as únicas e últimas pessoas na Terra. Não que isso fosse fato, mas era a sensação. E para ambos, as sensações eram as guias e senhoras de suas vidas. Ali não importava quem era quem, quem faria o que, quem perderia, quem ganharia. Satisfazia-lhes o simples fato de estarem ali, naquele momento, juntos. Contemplar o teto. Sentir o calor que a janela fechada insiste em acumular ao redor deles. Rir das besteiras mais simples. Ver o sol começar a entrar pela fresta da janela. Compartilhar da mesma água, do mesmo ar. Bastavam-se, simplesmente.

Um está deitado ao lado do outro. A cabeça de um apóia-se no braço do outro. A alegria é tanta que um nem lembra do peso que a cabeça do outro faz em seu braço. Não importa. O bom mesmo é estar ali. Com a mão do mesmo braço que suporta a cabeça, um acaricia os cabelos do outro. E contempla a beleza concentrada injustamente em uma única pessoa. As pontas de seus dedos passeiam com carinho pelo seu corpo, perdem-se em desejo. Respira-se muito, ofega-se  mais ainda. O suor escorre, mas nem um nem outro se importa. Bastavam-se ali, naquela hora, daquele jeito. O mundo que fosse dar uma volta.

Os olhos de um conversam com os do outro. Dão pequenas voltas, passeiam pelo rosto. Os lábios, os dentes, o queixo, a pontinha do nariz, nada passa desapercebido, até que os olhos voltam a se encontrar. Fixos, brilhantes e espalhafatosos. Qualquer um que visse aquilo morderia-se de inveja. Mas não há ninguém que possa estar ali. São só os dois. E um infinito de sensações.

Com os olhos fixos nos olhos um do outro, cada um sente a respiração entrecortada, que sai mais pela boca que pelo nariz. Estão entregues ao desejo um do outro. Os lábios se tocam pela primeira vez e os arrepios ganham intensidade. O toque beira o insuportável para a mente e os olhos se fecham para concentrarem-se no que o corpo sente. As mãos, perdidas, passeiam, exploram, excitam. As unhas entram pra festa, mordidas. Sim, o amor é às vezes violento, mas nada que um beijo não cure depois. Bastavam-se e, por isso, não se importavam com nada. O fim da história fica pra depois: é muito embaraçoso falar de amor.

Ouvindo: Patrick Bruel - Les Amants de Saint Jean

Tuesday, April 12, 2011

Juventude inocente

- Caralho, demorou pra caralho, hein?
- Pô foi mal, tava tirando uma grana da velha.
- Vambora que tamo atrasado pra aula, caralho.

Estavam realmente atrasados. A uma hora dessas o prof. Clóvis estava na segunda lousa da arrastada aula de semiótica. Júlio e Cabeça queriam e precisavam atravessar a Zona Oeste inteira para poderem, ao menos, assinarem a lista.

- Pô Júlio, vamo dar um tirinho antes de ir nessa.
- Caralho, hein, Cabeça, teu apelido fala tudo mesmo. Segura aí.
- Valeu, Julião.

Cabeça estica duas carreiras na capa do caderno. Seu ar sereno está prestes a dar lugar a um verdadeiro lobisomem dominado pelo efeito da branca. Cheira. Passa o canudo. Júlio cheira, dá a partida e limpa o nariz.

- E aí, quanto você descolou?
- Peguei só 150 conto. Foi foda, a velha tava afim de ajudar a gente não, viu?
- Caralho, hein, Cabeça, cê já foi melhor nisso né?
- Pô, foi mal, aí. É o que eu consegui arrumar com a velhinha.

Júlio coloca cada vez mais peso no pedal do acelerador. O carro segue o ritmo de sua cabeça, que gira agora em 3ª marcha, bem esticada, com o torque ao máximo. Seus olhos estão mais acesos que qualquer farol.

- Acelera aí, Julião. Tem que chegar nessa aula logo, caralho.
- Qualé, Cabeça? Tá com pressa de escolinha agora?
- Pô, temo que chegar logo. Vambora aí, acelera essa porra aí.

Pé na tábua, manobras agressivas, sinais vermelhos. Nada retarda a pressa da dupla de playboys que dirige rumo à Pontifícia Universidade. Estão no fim do segundo ano, mas são amigos e parceiros desde o dia em que se viram.

- E a velha, tá tudo em cima com ela?
- Acho que agora tá.
- Como assim?
- É que..
- É que o que, caralho?

Júlio espuma pela boca, não olha mais o que tem à frente de seu carro. A cocaína é agora sua dominatrix e faz o que quer com sua mente. Cabeça fala, entre o pilhado e o indeciso:

- Tive que mandar ela pro caralho, Julião.
- Filho duma puta. Falei que não era pra matar, caralho.
- Pois é, Julião, foi mal. Bora chegar na facul logo, mermão.

A pressa aumenta.


Ouvindo: Bomba Stereo - Fuego

Monday, April 04, 2011

Teco, Neco e Brasa

Teco era o Teco desde os 13 anos dado seu hábito precoce de cheirar pó. 'Tá vendo aquele neguim, já tá dando vários teco'. 'Óia o maninho dos teco chegando'. Para 'e aí, Teco, firmeza?' foram alguns meses de cafungadas constantes e um crescente contato com a rapaziada do crime. Reinaldo seria pra sempre Teco.

Brasa era primo de Teco desde os 11 anos de idade, quando dona Dirce morreu atropelada pelo trem. A mãe de Teco pegou o menino, que ainda nauqela época era chamado de Ivan, e trouxe para dentro de casa, onde terminou sua criação como se ele fosse um primo próximo da família Silva. Ivan virou Brasa porque sempre foi o mais esquentado da casa.

Neco sempre foi Neco. Desde pivetinho era conhecido no morro do Querosene como Neco, irmão do Reinaldinho. Neco viu seu irmão virar o Teco mas não acompanhou a carreira do irmão no pó, mas sempre esteve ao lado da rapaziada do crime.

A história de Teco, Neco e Brasa começou a esquentar quando Brasa apareceu no sobrado com um revólver ainda quente, os olhos bem arregalados e uma expressão congelada na cara:


-Aí, rapazeada, fudeu, a casa caiu pra nóis. Vamo meter o pé que os homi devem tá colando logo mais aí.


- Qualé, Brasa? Qual foi, aí? 


- Acabei de estourar a cara de uma velha ali na avenida. Dei no pé, mas os homens vieram na cola.


- Tomanocú, caralho, e você correu pra casa, arrombado? - pergunta Teco com o nariz sujo de branco e os olhos mais arregalados do que nunca. Há três dias Teco não sai de casa e já torrou cinco 'dedão do Faustão', apelido carinhoso da bolsinha de 50 conto que ele tanto adora.


- Vamo vazá, já era - sugere Teco, sempre o mais racional da turma. 'Joga o ferro aí na vala e vamo sumir daqui, mano'.


Tarde demais. Sem bater na porta, a polícia entra seguindo o rastro de Brasa. 32 tiros depois, os três irmãos estão mortos no chão do barraco. Dona Cida terá uma terrível surpresa quando voltar pra casa.


Ouvindo: Asian Dub Foundation - Fortress Europe