Thursday, January 20, 2011

Soldado de chumbo

X-E-R-O-S-O. Termina a demorada tarefa de marcar seu novo apelido na parede do barraco. Nem tão demorada como o processo de aceitação da alcunha. Tudo mudara depois da operação limpeza deflagrada pelo governo carioca. Muita polícia, muito milico, cagueta a dar com pau e a atividade teve que diminuir.

A boca agora funciona na encolha. Muito longe dos dois quilos do branco e 50 do preto que saíam por mês antes da invasão. Cidão, antes gerente do preto, hoje é o frente e vive entocado de barraco em barraco. Os 35 soldados estão reduzidos a 3. A maioria é vapor - desce o morro com mochilas nas costas e sobem com dinheiro no bolso. Eram 23 moleques, entre eles, Nequinho, filho da dona Marli, 12 anos, 1,35m de altura, 32 kilos pesados na farmácia da esquina.

Nequinho ganhou apelido novo dois dias depois que o Caverão subiu o Morro dos Mineiros. Assim que viu o carro preto subindo, subiu o morro na frente, metade da mochila carregada de mercadoria, berrando esbaforido:

- A máquina de matá pobre tá subindo. Tá subindo, vão matar geral, aê!

Nequinho é um menino obediente e focado. Sempre de orelha em pé para as dicas dos soldados e do patrão. Enquanto gritava, lembrava: 'pode ir pra casa não, mermão, passam o rodo na tua família toda se não te acham lá'.

Virou de surpresa numa viela à sua esquerda, entrou por baixo do barraco do Seu Quinze e pulou com fé no valão do esgoto. 'Só saio daqui morto, esses alemão não me pega nem fudendo, aí'. Repetia o mantra enquanto espantava ratos, baratas e tudo mais que passeia pelo esgoto e insiste em colar em seu corpo.

O tempo passa devagar e, ao meio dia de um dia quente, a vala é um lugar ingrato. O cheiro de podre entorpece Nequinho, que não pode desistir, não pode desentocar antes que os inimigo dêem pé da favela. Sonha alto - ou talvez alucine de fome, de enjôo, de cansaço. Quer virar soldado logo, andar de quadrada enfiada no bermudão, comer as mina geral, botar um Nike no pé, tomar Red Bull, cheirar até umas horas, virar sujeito homem e não largar dessa vida nunca mais.

No fim do segundo dia enfiado na sujeira, Nequinho ouve o aviso dos fogueteiros - somente foguetes de um tiro só, estourados um a um durante um minuto seguido por uma salva de "treme-terra" de 12 tiros. A senha exata para saber que a polícia sumiu dali. Na base do arrego ou por ordem do governador, o que interessa pra ele é que ele tá salvo.

Tira a cara do buraco e percebe como os ratos vêem a gente, olhando por baixo, sujo e malvisto. Limpeza, o vai e vem de sempre, tudo "normal". Resolve meter o corpo pra fora e subir até a boca, falar com o Cido, mostrar seu heroísmo e a meia carga que ainda conseguira salvar na mochila. A visão de tantos rostos desolados na subida do morro deu a pista para o que o moleque iria encontrar lá no alto. O patrão não se anima muito quando vê Nequinho chegar na boca, mas assim mesmo abre o canto da boca com um sorriso de dentes pretos e finos.

- Caralho, que cheiro é esse, Nequinho?
- Na moral, tava entocado, aí. Tava lá na vala.
- Aê Cheroso!
- Qualé, Marcão, dei mole não rapá.

Aos 16 anos de idade, Marcão era o melhor soldado da boca e foi um dos três que sobraram em pé depois que Cido ordenou que começassem a trocação com a polícia. 90% dos soldados morreram - de tiro trocado ou de execução, o fato é que nenhum dos moleques saiu dali preso. A sorte de Cido é que levaram Cotoco, chefe da endolação, em seu lugar. Ouviu tudo por debaixo do barraco, mas não deus as caras enquanto Cotoco era esculachado e forçado a dizer que era o gerente, o Cido da Biqueira. O patrão do morro sumiu um dia antes da invasão.

- Já é, aé, agora tu vai ser o Cheroso.

A palavra do chefe era palavra final.

- Tu sabe atirá, rapá?

Era a primeira vez que Nequinho, agora conhecido como Cheroso, não era tratado por moleque. Sem hesitar, mandou na lata:

- Claro que sei, ué.

-Então pega nessa quadrada que agora tu subiu de posição. Agora tu é soldado, irmão. Marcão, joga um radim na mão do Cheroso. Agora é tu, Cheroso e o Berola. Quem é o frente dessa porra aqui, caralho?

- É cê mesmo, Cidão. O baguio aqui é CV, tá ligado?

- Já é! Junta lá com o Berola e vamo metê atividade nessa porra, precisamo levantá a boca, ganhá uma merreca aí pra se sustentá.

Cheroso vira as costas e começa a descer o morro. Quer muito participar de um bonde e sentar o dedo nos inimigos. Sonha calado em participar de um bonde, daqueles bem sinistros, que vão entrar pra sempre por anedotário popular das favelas cariocas. Cheroso quer ser herói.

Ouvindo: Da Weasel - Dialectos da Ternura

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