Saturday, July 26, 2025

Minha lista de vontades número dois

 Ver-te, sentir-te, olhar-te, tocar-te, sorrir. Repetir tudo isso na mesma ordem ou aleatoriamente. Rir. Agradecer à vida. E, mais uma vez, obrigado.

Respirar teu sopro por um longo momento. Olhar a tua pele de perto, acariciar o teu cabelo, há uma energia e um cheiro de felicidade no teu cabelo. E essa energia também está nos teus olhos. Quando olho para ti, pergunto-me se vês em meus olhos o mesmo que vejo nos teus. Acho muito bonito o que vejo, assim como o que ouço, acho muito bonito o que a minha pele sente e o que faz ressoar o meu coração, a minha cabeça e a minha alma quando me tocas. Muito bonito. Estamos aqui para falar dos vvontades, é uma lista. Ouvir tua voz, tua respiração, tuas inspirações, o timbre da tua voz, a inteligência, a delicadeza e a humanidade que colocas em tuas palavras. Quero ouvir-te falar, gritar, rir, até chorar, se o coração assim pedir. Quero contar quem é o menino que habita este corpo. Quero saber de onde vem a mulher maravilhosa. Quero sentir teu cheiro, em todo o lado, que fique colado. Quero abraçar-te e sentir-te segura, relaxada, tranquila. Também um pouco excitada, langorosa . Conecentremos-nos na lista: vejo-te, sinto-te, ouço-te, respiro-te e desejo-te. Quero ser o teu amante e que possamos pensar um no outro como um presente da vida. Quero nunca esquecer que somos inteiros, nem esquecer de ser assim. Quero que as nossas conversas não mudem: claras, abertas, inteligentes e amorosas. Tenho vontade de lamber tua cara de novo, quero olhar nos teus olhos e contar o amor que a minha alma sente pela tua. Quero que sejas feliz, livre, desperta, presente, magnética. E tu já és. Quero pegar na tua mão, entrelaçar os meus dedos nos teus. Agora quero beijar-te, podemos?

Ouvindo: Abstrakt Keal Agram - Mata Hari


Publié suite à ma liste des envies numero 1. Leus deux textes sont originaux en français. La traduction a été faite par un ordinateurnet moi même



As relações mediadas por palavras...

 ... devem, em algum momento, se calar. E o primeiro passo pra essa brincadeira começar é aprender a mandar elas calarem a boca. Na moral, sem brusquidão, mansinho. Cala a boca. Pode botar por favor, pede direitinho. Calou? Agora aconchega-te no teu lugar, abre os olhos, o nariz concentrado, a pele à flor dela mesma. O tempo deve desacelerar, o tempo é teu, bota areia no mecanismo do Rolex e absorva tudo o que a cena mostra. Tua sobrancelha esquerda levante muito quando falas sobre jeitos de enganar teu desejo. Tua boca enrijece-ce. Ouço mais bemóis que notas naturais. Tenta convencer-me de que queres o que não queres, os ouvidos estão desligados. As palavras são bonitas, intencionais, encadeadas, lógicas. Mas elas estão agora caladas e é em teus lábios que concentro-me e eles não estão de acordo com tua boca. Teu peito tampouco. Difícil olhar e ficar concentrado, a mesma coisa vale para a boca, teus dedos que se emaranham em teu cabelos. Concentra-te, olhas as palavras voltando pra te atormentar. Sente o cheiro da cena, é bom. Muito bom. Tu dizes que fede. E se eu mexer nos ponteiros do Rolex cheio de areia, posso ir direto pro momento, dias depois, quando dizes que na verdade, o cheiro é mais que bom. Então aqui provamos que a boca e o coração não chegaram a acordo. Se um dia chegarão, não saberei. Era o cheiro de nosso amor que estava ali, quente, colante, gostoso. E as palavras vem, jogam o cheiro no lixo, dão a descarga e a coisa fica lá, guardada naquele tempo, mas impossível de guardar pra sempre. Seja surdo, seja herói. Seja mudo, seja deus. Eu olho tudo, analiso, engulo e hoje meu pedido pro papai do céu é de aprender a cuspir. Ah não, vamos descer logo do carro, senão a gente ainda vai se beijar durante 5 minutos. Senão. A metade dessa palavra é "não". Não beija-me. Não beijo-te. Não nos beijemos, não nos beijamos, não vou beijar nunca mais. Quando te esforças para abandonar teu corpo, a palavra esforço está lançada. Ex-força. Aquela velha e antiga força que aparece pra te assombrar e que manda teu corpo calar a boca. E a boca insiste no esforço. Levanta a sobrancelha, coça, faz careta, nariz franzido e a boca lá de boa, só contando coisa sensata. Vai mudar. É a primeira vez. Na verdade, quero. Mentira. Inocente, bem intencionada, provocante, sensual, convincente mas ... mentira. Também conto várias. Calemos então essas palavras. Voltemos a falar quando as palavras sejam compostas de uma intenção que tua alma aceite. As palavras são presentes que oferecemos um ao outro e oferecer é uma bela palavra, cheia de intenção. Pega a palavra, bota um laço vermelho em volta, embrulha, pega com carinho, olha no olho e faz a porra do gesto de oferecer. Os braços vão pra frente, o olhar não vacila, o sorriso brota , o outro estende a mão, pega, desembrulha, olha o laço, os enfeites, o presente. Lembra o dia em que oferecemos livros um pro outro? Então...


Ouvindo: Queen - Don't Stop me Now

Monday, June 16, 2025

O inferno e a importância dos dentes

Eu devia estar feliz por ter quase todos meus dentes na boca, pelo fato de meu coração bater de dia até à noite, sem pausa. Braços, pernas, cabelo na cabeça, tudo tenho. Cabelo tenho até demais. Porém... Tem algo que foge, eu corro, procurando e segue fugindo. A cabeça não tem razão alguma em tentar copiar o coração em seu trabalho incessante, peço que dê -me um respiro. Pois esse é trabalho do pulmão, que tenho dois. A cabeça não dá trégua, remói sensações e tenta até mesmo tomar a função digestiva de minhas tripas. As tripas sentem também, ficam ora moles, ora encrispadas e não dá pra saber de jeito algum quem controla quem nessa agitação. Gente que vai dormir emburrada acorda ainda mais. Entretanto, o plano não é esse, é bem mais simples. Vai saber por que é tão raro comunicar. Falo de comunicar quando um fala, o outro ouve. Após ouvir, escuta, responde, pergunta. O comunicar quando não tem ouvidos deixa a gente emburrada. Malditos sejamos todos com essa impossibilidade de abertura que leva-nos a acordar mal. Quem acorda mal fica mau. Sonho com um mundo onde damos-nos conta de nossa insignificância e abrimos mão da violência protetora de nossas fraquezas. É pesadelo. Acordo emburrado e mau, protetor de mim mesmo. Tarde demais pra reparar, o outro não consegue tampouco reconhecer o mal. O tempo passa, rápido. Os dentes vão amarelando, amolecendo. Os desejos união são apenas palavras, pois o que importa pra cada um é salvar sua pele, desafiar o destino para um duelo perdido, esquecendo que a morte não liga pra ameaças. Para-se de viver para dar razão ao tempo, que leva tudo embora. Ficam as lembranças, que como os dentes, tornam-se cada vez mais amareladas, amolecendo. O homem está emburrado, a mulher também. E o tempo, sentado em sua cadeira, fingindo ser o personagem mais paciente de nossa história, ri de nossa desajeitada maneira de existir. Sinto tua falta. Também sentes a minha. O tempo sabe disso e não oferece ajuda pois sabe de sua importância. O tempo não quer saber de caprichos, não quer saber de vaidades, ele só passa e colhe tudo o que temos para oferecer. Eu deveria estar feliz por ao menos ter (quase) todos meus dentes na boca e usá-los pra morder a vida. Mas agora o tempo passou. Estou feliz por ter meus dentes. A vida é um serviço de streaming e minha televisão está bloqueada no canal do inferno. O parceiro com quem dividia a assinatura cancelou, nem falou por quê. Travou a transmissão e cá estou preso. O inferno é um lugar mais simples que imaginamos, há poucos inconvenientes, certo luxo e muitos bons costumes e intenções. O primeiro inconveniente é que todo mundo fala sozinho. A capacidade de escutar - 

a audição enquanto sentido continua a rodar a cem por cento - é totalmente apagada da memória do convidado. "Convidados", assim chamamos os habitantes do local. Os autóctones nomeiam-se "anfitriões" e organizam a prestação nos mínimos detalhes.
O chefe de serviço:
-Anfitrião César, por favor, é hora de servir o convidado Carlos...
-Sim senhor.
De um passo decidido e elegante, anfitrião César passa pela cozinha, pega o prato na boqueta, passa pelo bar de estilo inglês, pega uma garrafa KS de Coca Cola Light, bandeja de prata com guardanapo de linho e parte para o serviço.
As geladeiras não funcionam, a Coca Cola Light é "quente desde sempre e para sempre será", regra criada pelo anfitrião Marcos, idealizador do recinto. Mathias, irmão gêmeo de anfitrião Carlos e primeiro convidado de todos, virou chef de cozinha e criou a regra do prato único, pão com cebola e molho branco. A regra do serviço é clara, anfitrião César, enquanto garçon, deve servir convidado Carlos nas regras da arte e, sobretudo, assistir de perto o convidado comer, guardanapo na mão, para limpar diretamente no rosto do convidado cada migalha e escorrida de molho branco. Assim que o convidado termina a refeição, o anfitrião parte e o convidado retoma o direito de continuar seu diálogo sem ouvidos.
Aqui você fala "bom dia" e te respondem "amanhã". "Te amo", respondem "eu também não". Convidados que acabaram de chegar são vistos às vezes achando engraçado, dias depois a loucura toma conta. E já é hora do jantar. Pesadelo. Os dentes, que servem no inferno pra mascar cebola e serem limados por litros de Coca Cola, devia estar contente por ter guardado quase todos eles. De noite os dentes rangem, chama bruxismo. Bruxa vai tudo pro inferno e fica lá rangendo os dentes por causa da cebola. E elas vem na tua cama de noite pra te lembrar que logo mais é a tua vez de ir beber Coca Light. Cabeça, por favor pare, dê paz. Pulmão, enche de ar de uma vez, tosse engasga, acorda a gente aí. Tripas, calma, tá passando. Leva tempo pra digerir, vai na boa. Mas não se atarde, pois logo mais aparece o anfitrião com sua bandeja de prata e guardanapo de linho.

Ouvindo: AC/DC - Love at First Feel
 


Wednesday, February 24, 2021

O carnaval que nunca aconteceu

A melhor música de todos os tempos, perfeita pra pular carnaval, foi acidentalmente composta pelos Gipsy Kings. Volare, cantare. Introdução em solo de guitarra e canto: esse é o momento pra encontrar aquele par de olhos e, olhando profundamente dentro deles, cantar mais ou menos assim:

Pienso que un sueño parecido no volverá más
Y me pintaba las manos, la cara de azul
Y de improviso en el viento la vida me llevo
Y me hizo a volar en el cielo infinito

Seja eficaz, olhe com vontade de olhar, de criar contato, desejando. Pois a música não espera a tua vergonha e chega logo em sua segunda fase, a fase da catarse coletiva.

Volaré, oh oh
Cantaré, oh oh oh oh
Nel blu dipinto di blu
Felice di stare lassù

Nessa hora o povo todo dança coletivamente com as mãos pro alto, todos se misturam, se olham, sorriem. Vale até trenzinho. Agora teu par está no meio da multidão, presa fácil para outros desejos, outros carinhos acidentais e fugidios tais que uma mão que esbarra na outra, um ombro que roça um outro ombro anônimo, a mistura que agrada todo folião de respeito. Hora de recuperar aquele olhar, a fase três da canção, chave para que a dança continue até o fim num montante de tensão e cumplicidade. Os ciganos continuam. E tu também.

Y volando, volando feliz
Yo me encuentro más alto
Más alto que el Sol
Y mientras que en el mundo
Se alejó despacio de mi
Una música dulce
Tocaba solo para mí

Chegamos na fase crítica de Volare, o momento em que os olhares iniciados há exatos 1 minuto e treze segundos devem ter tomado uma forma magnética. Se não for o caso, hora de procurar o pesado mais próximo, abrir mais uma latinha e volatr algumas casas no tabuleiro. Se a atração atrai de maneira atraente, Paco Baliardo dá a deixa com um dedilhado de seu violão antes de Nicolas Reyes retomar o hino.

Pienso que un sueño parecido no volverá más
Y me pintaba las manos, la cara de azul
Y de improviso en el viento rápido me llevo
Y me hizo a volar en el cielo infinito

Agora é tempo de dar as mãos. Segure as duas mãos da pessoa, na altura da cintura e proponha, silenciosamente, uma dança a dois. Se tudo está bem, o mundo já desapareceu de vosso entorno e a única coisa no campo de visão do casal é o olhar do outro. Enlace a cintura do outro, enquanto o outro braço toma a posição básica de uma dança de salão qualquer. Dance. E cante baixinho enquanto teu olhar está atravessando os olhos do outro. Quando Reyes retomar o "volare", voltem para o mundo da multidão e pulem juntos, rodem, dancem. E retomem a dança a dois, e pulem, e rodem, e dancem. E aproveitem do tempo que parou para ver os dois. Se ainda houver dúvida, dance em volta do outro, como um cigano à beira do fogo, batendo palmas para o alto. Rode em volta, sorrindo, olhando. Ao chegar ao breque, 3 minutos e 37 segundos depois, pare. Olhe. Sorria. Aproveite.

Ouvindo: Gipsy Kings - Tu quieres volver

Wednesday, December 09, 2015

2015, o ano da pedra

Toma o ultimo gole da Heineken morna, amassa a lata bem no meio, faz 16 furinhos concêntricos enquanto fuma a grandes tragos. Furos prontos, recupera uma ou duas batidas de cinza bem no meio dos furinhos. Bota a pedra, inverte o isqueiro e dá a primeira paulada. Calça seu par de Doc Marteen's, calça de pular brejo, camiseta branca, suspensorios e uma boina cinza. Continua fumando a quimba do cigarro, cada vez mais pontuda e quente, assim como os olhos, que fervem. "2015 é o ano da pedra", sua fala em direção aos amigos ainda ressoa em sua cabeça a cada vez que queima uma na lata.

Começa a a subir a rua dos Italianos em direção à Luz, dando a tradicional quebradinha pela zona de não direito entre a José Paulino e a estação. Passa em frente uns botecos, lugar onde não entra. Malditos chineses e seus bares por demais iluminados, com os olhos pequenos de tanto jogar videogame. Eles comem baratas e, se eles comem baratas, a gente também come. E transam como ratos, aos montes de gente onde ninguém sabe onde termina cu e começa rola. Pau no cu desses chineses pensa enquanto resmunga e volta a olhar o chão como se fosse horizonte. Assim caminha o craqueiro.

Passa em frente a uma padaria, doze garrafas bem expostas na porta, cervejas com nomes que não querem dizer nada, coloridas, enfeitadas com ursos e cevadas. Rouba tres garrafas de passagem, esticando o braço. Olha rapidamente as três, que segura na mesma mão. Joga a primeira pra trás, por cima do ombro e a segunda espatifa no chão, com raiva, barulho e cacos por todos os lados. Alemã, essa porra de breja.

Abre a eleita com o isqueiro, primeiro objeto a prever quando começa-se um passeio pelo crack. Toma um gole grande, que tem dificuldades pra driblar a goela travada. Acende o cigarro, engole a segunda metade do gole e arrota. Stout, Bears' & Lumbers' Dream, duplo malte, cevada de primeira, torrefi... trorrefica... troreficação e aroma de meu caralho. Forte pra diabo essa porra. Bate mais cinza na lata, bota mais uma pedrinha pra tostar, tosse, fuma, coça a cabeça e solta a fumaça com força, esvaziando de vez os pulmões. Recomeça a andar e a resmungar sobre os chineses e seus videogames. Ouve uma voz anasalada e rouca ao mesmo tempo:

-Tem razão, eles fodem como ratos, todos embolados. E você, seu lixo? Ei, ei, queima-rosca, fumando pedra com o bolsa familia, arrombado?
- Ta me tirando, Jão? Tá achando que cê é quem?

Veste mini saia rosa, bem mini, saltos plataforma envernizados, muita maquiagem. Mede, no máximo, 1,20 m. Pernas grossas, que faz questão de manter peludas. Boca carnuda, ornada com batom rosa com purpurina nos lábios e uma verruga no canto inferior esquerdo. Uma aparição recém saída da Amaral Gurgel.

- Eu sou o diabo, filha da puta.
- Sai daqui, traveco do caralho.

Logo que o caralho saiu de sua boca, sentiu-a secar, a lingua dobrar, a gargantza inchar, o coracão acelerar a a respiração ameaçar parar. O traveco anão e capeta tinha uma única teta no meio do peito peludo e ainda guardava seus mamilos de outrora. O craqueiro tratou de acreditar.

- Você me chamou, agora vai ter que falar.
- Chamei nada...
- Chamou sim. "Stout, ursos e compania, torre.. torresmicada com café, glaglaglá, FORTE PRA DIABO. Chamou sim. Tava te acompanhando desde lá de cima e ouvi você chamar meu nome. Quer o que?

Aliviado depois que o capeta afrouxou a corda, tremia. O coração foi o único que não reduziu o compasso. Suor frio escorre por baixo da costeleta. Malditos desses chineses que fazem essas cervejas com bosta de urso e botam torresmo dentro. Aposto que tem baratas, certeza que tem baratas, eles comem baratas. E transam o dia todo, transam com a mãe, com a vó e com o pai, todos os dias até ficarem grávidos e fazerem um monte de chineses, que ficam jogando videogame até o olho ficar pequeno. E mesmo com aqueles pintinhos pequenos eles conseguem, imagina se tivessem uns pauzão. Malditos esses filhodasputas de chineses, que tem esses bares que piscam muito...

Sem se dar conta que reclamava em voz alta, ficou surpreso quando não viu mais o diabo, que havia anotado seu pedido. Tateia a lata guardada no bolso apertado da calça e acende mais um cigarro. Fuma a grandes tragadas pra fazer bastante cinza. Mais uma volta na roda gigante, é hora. Perambula durante a noite, a madrugada toda e vira o dia na pedra. Passa ao lado de uma banca na rua Newton Prado, onde não vê a manchete do Notícias Populares:

CAPETA SOLTO NO BOM RETIRO: CHINES ENCONTRADO MORTO RECHEADO DE BARATAS

Ouvindo: Roots Manuva - Dreamy Days

Tuesday, June 03, 2014

Festa do Inferno

Terra de ninguém. Quinze minutos atravessando o vinhedo nantês ao volante do caminhãozinho. O caminhãozinho, que carrega uma cozinha e litros de muscadet, vira em frente à esfinge do Looksor, que guarda o bar- única construção em alvenaria naquele lote. O resto ainda não saiu dos containeres, à execeção da roda gigante que ja ocupa seu lugar definitivo para fazer passear os festivaleiros do HellFest, em bom português, festa do inferno.

Nada como terra de ninguém para ressucitar uns mortos. Iron Maiden, Aerosmith, Slayer, Megadeth, sendo a lista não exaustiva. Os monstros do roque reunem-se nessa cidade cercada por uvas e garrafas que, juntas, fazem o Muscadet du Pays Nantais. Precisamos encontrar o responsável.

O campo, que 335 dias por ano é dedicado ao nada, é controlado pelos intermitentes do espetaculo, espécie em extinção formada por anormais, psicopatas, timidos; descoloridores de cabelo, tatuados e botinudos, todos muito gentis. O responsável chegou e dirige um quadriciclo fumacento, bermudas jeans que ja foram calças e coturnos azuis. Fala como quem tivesse acordado e lavado a boca com muscadet. "Eu tenho suas chaves". Obrigado, santo homem, mas esse cabelo ta meio feio.

O restaurante é o primeiro "prédio" que saiu dos containeres e foi montado com bastante lona branca, plastico e ferro. As portas estão abertas para uma temporada em que os intermitentes virão ocupar nossas mesas a cada meio-dia ou hora da janta. Entradas, saladas, frutas, carne, carne, peixe, carne; frango também. Doces, tortas, bolos, queijos; café e bolachas, sanduiches. Leitinho e pãozinho de manhã. E vinho - tinto, branco e rosado.

A lona abre e mostra o salão vazio que vai virar cozinha  assim que esvaziarmos o caminhãozinho - os caminhões eram três. Duas toneladas de material, de diferentes tamanhos, pesos, importancia e matriz energética cabem em três caminhões - dois deles poderiam ser confundidos com vans, mas o ultimo era um caminhão por certeza. Desce a chapa, desce o forno; empurra a geladeira, cuidado com o fogão; traz a pia mais pra cá, bota o lava louças pra trás. Cuidado com o fio, olha o dedo, porratápesadopácaralhoessaporra. Em uma hora de trabalho conta-se 5 pessoas para descarregar três caminhões. Tudo isso para cozinhar para monstros e intermitentes.

Com as mesmas 5 pessoas é preciso mais 1h30 para botar tudo em seu devido lugar e criar a cozinha que vai fazer comer até 600 pessoas por serviço em seu auge, assim que todos os fornos, chapas e fritadeiras estiverem quentes o suficiente para que os garçons, vestidos em camisa branca, possam bradar em frente ao barracão que os monstros poder vir todos tomarem seus lugares e uns copos de muscadet e:m nossa espelunca.

Tudo esta em seu lugar e espera pela volta dos intermitentes em seus quadriciclos para que cada elemento da cozinha crie raiz. Deixamos o "cuidado pra não dar curto-circuito" e o "bota uma espuma de sabão pra ver se o gás ta vazando" praqueles caras. O responsável volta, um homem sem nenhuma decência e temor ao julgamento, corte de cabelo manga chupada, tingido de azul. A parte sem cabelos é tatuada de um tribal que dá a volta ao globo. O responsável garante: amanhã tá tudo conectado. Monta o veículo da festa do inferno e parte deixando poeira em terra de ninguém. Fico a esperar os monstros.

Ouvindo: Underworld - King of Snake

Thursday, January 19, 2012

Pessoas são eternas; ja os diamantes...

Julião Pestana acorda, como todos os dias ha muito tempo, às 6h da manhã em sua cama de solteiro. Não se lembra ha quanto tempo chegou a um acordo com Dona Aparecida para que cada um dormisse tranquilo em seu canto. Veste-se como ha muito tempo: calças sociais, tenis de corrida - aqui cabe um parenteses, sao os tenis mais modernos e baratos que se podem encontrar no mercado francano. Toma certo tempo para passar a cinta em volta da barriga para dar mais sustentaçao à hernia que acompanha-lhe ha um tempo que nao conta mais. Veste a camisa. Falta um dia para completar seus 90 anos.

Nunca soube ao certo a idade de meus avos. Quando criança, Juliao sempre dizia ter "mais de 200 anos", o que rendia risos e descrença na cara dos netos. Agora sei que ele é normal, tem apenas 90 anos - o que se pode notar pelo tamanho de suas sobrancelhas e pela sabedoria de seus conselhos. Tudo o que sei sobre mulheres (e o amor, consquentemente), foi Juliao quem me ensinou. Ensinou tudo que eu sei sobre pipas, fazer a cola na panela,  cola que ele chamava grude. Ensinou-me que as duras mais severas fazem parte de amar. Ensinou-me que a distancia é algo pouco importante quando se ama alguém, pode-se cultivar e cativar pessoas com uma simples palavra, mesmo que anos e muitos quilometros as separem.


Por que perco-me em essas lembranças? Quantos anos tinha a vo Bianda quando ela resolveu deixar essa terra? Nao sei, perco-me simplesmente em lembranças, as quais invento e adiciono detalhes, apago desgotos e apego-me aos sentimentos que meus avos fizeram brotar. Se hoje gosto de cozinha é tudo culpa da Dona Sebastiana, que topava qualquer parada e resolvia tudo com suas panelas e seu jeito despachado de receber e servir. Se hoje tenho esse jeito besta de rir de quase tudo e de sorrir ao ponto de parecer imbecil, devo a vo Picida e ao seu jeito unico de cobrir a boca enquanto ri timidamente depois de qualquer gracejo.


Pessoas vivem pra sempre, não importa o que aconteça. Vivem dentro de mim. Mesmo os amigos mais distantes, mesmo quando seus rostos, vozes e cheiros são fugidios em minha memoria, guardo a esssencia, o sentimento, alguma palavra, o ultimo sorriso, o ultimo abraço que tive: fazem parte, sao o que sou. Mesmo que tenham mais de 200 anos. 

Juliao toma seu café pausadamente, café forte e doce de receita marcada na leiteira pela força do uso. Bota seu aparelho auditivo e caminha calmamente em direção à sala de estar para buscar seu jornal. Amanhã é seu aniversario. O mais estranho é que ainda faltam muitos anos para que meu avo chegue à idade em que o conheci. Duvido muito que ele chegue aos 220 anos, mas, dentro de mim, vive a eternidade. Julião nunca tocou um diamante.

Ouvindo: Noir Désir - Le Vent Nous Portera