Friday, October 21, 2011

Lembranças que eu tenho de lá

Te echo de menos, le digo al aire,
te busco, te pienso, te siento
diciendo que como tú no habrá nadie.
Y aquí te espero, con mi cajita de la vida,
cansada, a oscuras, con miedo
y este frío nadie me lo quita. 

(Bebe - Razones)


O plano é partir para Franca amanhã, logo pela manhã. A cidade ondei deixei para trás as primeiras caixinhas de vida. Lembranças, mesmo que muito vagas, ainda me comovem: o sotaque, o jeito inconfundível de dizer 'tií e fií' no lugar de tio e filho, a visão da mufa épica de Papa Tony's - o lugar onde comi meu primeiro dogão. Caio, Roberto, Roberta, Jonas, Douglas, Rogério, Tatiana, Mariana - aquela pra quem mandei as mais desesperadas e, literalmente, infantis cartas de amor - Pâmela, Vinícius, Ana Paula. Hoje escrevo seus nomes em um blog à medida em que me vêm à mente. Mas são só nomes que tenho na cabeça. Não há mais a lembrança de fato, tampouco o desejo de revê-los.


Rodrigo, tá aí um cara que me ensinou a rir da vida e de mim mesmo. Ria do rangido infernal que o FIAT 147 de meu pai fazia quando freava a fundo. Ria alto, zoava e fazia todos rirem. Filho de negociantes - seria um mercado que Dona Regina chefiava? Não sei, lembro mais dele chegando na pracinha e mandando, em alto e bom som, enquanto olhava pra mim: 'tã nã nã nã nã nã nã nã nã nã... Johhhhn Cabeeeeça'. Mesmo sendo endereçada a mim, era tão engraçado que eu mesmo ria do tosco apelido.


Outros apelidos vieram: Cabeção, Formiga do Planalto - o bairro francano, onde aparecem formigas que fazem deus questionar sua habilidade. Chernobil, da primeira vez que raspei a cabeça. Desse, não consegui rir. E outros mais vexatórios apareceram, mas sempre dei meu jeito de rir junto com o pessoal. Desde o tempo em que era o Ferruginha, em outra pracinha. Sempre apareciam os apelidos, principalmente na pracinha Santo Antônio, na Cidade Nova. E o mestre das alcunhas atendia pelo melhor vulgo da época: GT.


GT era o proto-marginal, daqueles que dão pinta desde adolescente de que não estão nesse mundo para contentar-se com regras. De família amalucada - um de seus parentes chamava-se Billy e sua irmã era a Cléa, conhecida por lá como Créia (era como a trissomia do 21 a incentivava a dizer seu nome). E muito aprendi com GT, como me virar na rua, como entrar nos lugares mesmo não sendo bem vindo e, o mais útil de todos - como saltar moitas enormes daqueles espinhos que o povo chama de 'coroa de cristo'. Na verdade, nunca fui muito bom nessas coisas de pular. Nem moita, nem muro. Por onde andaria Fabício, o GT?


Nessas andanças por ali, fiz uma dívida eterna com o meu melhor amigo, vizinho de frente da vó. Bocão, conhecido pela família como Diego, tinha a boca em que cabiam, contadinhas, 6 bolachas Maria. Gente boa até o último, tirando o fato de ele gostar de molhar o pão no café, que tomava de canecadas. Um dia, em meio às nossas reflexões pelas ruas da vizinhança, prometi inocente: 'ó, Bocão, um dia eu vou te dar um carro, vai ser um Opala'. Sempre que me lembro - esse é um dos quais o rosto de criança me vêm à mente - penso em saldar minha dívida. Foda vai ser achar um Opala, bege, igualzinho ao de seu tio Zeti. O Zeti tinha marca de bala e de facada na barriga, inchada de cachaça.


E a Edinéia? (nesse ponto, você leitor já deve estar cansado de rir de tantos nomes e apelidos, pois não?) A Edinéia era irmã do Érmisso, que fora batizado Emerson, filho do tiozinho que era lixeiro e que morava nos fundos da casa do bocão. Foi com a Edinéia que fui atrás de um Fusca bege, estacionado em frente à casa da vó e lasquei-lhe um beijo. Beijinho, curtinho, estralado, mas, que importa se tão furtivo? Foi o primeiro. 


Por onde anda essa gente? Ainda tenho parentes na cidade, mais de vinte, aliás. Um dia, depois de muitos anos sem aparecer por lá, fui ao mercado e queria comprar presunto, queijo e afins. Fui atendido por um jovem bastante cortês, de olhos azuis claros bastante familiares. Um reencontro dividido por um balcão resfriado, lá estava Douglas, o Tuca-Tuca, vizinho de muro da rua de baixo - eu morava num corte no morro com vista pra boa parte da cidade. 'André, você, quanto tempo, que tal, tudo bem, bem e você, faz tempo, né, e aí, como tá a família - a irmã dele salvou-me do meu primeiro desmaio, quando caí da goiabeira de sua casa e seu rosto de anjo salvador olhado de baixo pra cima ainda tá guardado em uma caixinha. 'Então é só isso, obrigado, obrigado a você, um dia a gente se fala, um abraço, pra tua mãe também'. 


Por onde anda Diego, o Bocão? Dias atrás, minha tia encontrou-o na rua, moleque crescido, sujeito homem, se virando com seu irmão de criação depois que a Gracinha morreu. Gracinha era a mãe do melhor amigo, carinhosa pra caralho, criou o Bocão sozinha e ainda pôs o Bruno embaixo da asa quando a Mariley morreu. Preciso apressar-me para achar um Opala, juntar um troco e saldar minha dívida. Pagaria o mundo para poder ver seu rosto agora, aquela boca onde hoje devem caber mais de uma dúzia de bolachas. Se não levar o Opala, ao menos recupero mais essa caixinha de minha vida que está perdida por aí. E refaço minha promessa, a qual um dia vou cumprir: um Opala bem bonito. Ferruginha e Bocão dando um rolê na Avenida.  Já pensou?


Ouvindo: Iron Maiden - The Sign of the Cross

Thursday, October 06, 2011

O sótão e suas lembranças

A primeira coisa que deve-se pensar quando de uma mudança: caso haja um sótão na casa, uma corda é necessária. Imprescindível, na verdade. Assim como abrir as janelas do sótão horas antes de ocupá-lo com a missão de retirar dali tudo o que não seja uma bagunça eterna; tipo de coisa que ali permanece até que a casa seja um monte de entulhos.

Nunca imaginei morar em uma casa com sótão. Qual seria a serventia de tal cômodo? É certo que não cheguei a morar ali, dormir todos os dias, pagar umas contas e tudo mais que faz com que você seja morador, não visita. Mas descobri que, dentre as utilidades de um sótão podemos citar: guardar caixas d'água e restos de construção - aqui queria entender por que tem-se dó de jogar todas as sobras na caçamba ou mesmo doá-las para quem daria mais serventia ao material.

Serve também para ser um local quente em dias de calor e gelado em dias frios. Caso o morador aprecie extremos, tá ali um cômodo aconchegante. E a principal função: estocar de maneira quase definitiva aquilo que você nunca mais vai usar. Exames médicos, diplomas da pré-escola, cadernos velhos, tudo cabe em um sótão quente e espaçoso.

Por serem as ideias fugidias, assim que pensares na corda - extremamente necessária para o caso de mudança em uma casa com sótão - lembra-te de pegá-la: a corda será a tua salvação. Com a corda em mãos, subo a escada estreita, daquelas de filme, que se escondem no teto e devem ser puxadas com uma elegante corrente. Na falta de uma corrente, improvisa-se bem com uma pá de pegar cinzas. Quente. Por que não ter aberto as janelas antes? Enquanto penso, o suor escorre pelo rosto. Era dia de fazer a barba. Sem tempo, ela só ajuda a aumentar a sensação de lugar mais quente do mundo.

Após breve análise, temos um diagnóstico: são 6 caixas grandes de papelão e a maior parte delas era caixa só no nome, não mais apropriadas para carregar qualquer coisa. Entre livros, radiografias, eletrocardiogramas, cadernos, enfeites de natal, correspondências, lembranças, livros - de todos os tipos, diga-se, desde a Teoria do Basketball ao Código da Vinci - encontro muitas traças, que saem apressadas e sem saber pra onde ir quando veem luz depois de tanto tempo.

As coisas ali não tem mais dono. São da casa. São do sótão, na verdade. Os moradores já retiraram todas as suas coisas de dentro da casa. Pelo menos é assim em suas cabeças. Suor constante, que, de tão constante, não me incomoda mais quando escorre pelo rosto. A corda. Ainda bem que eu achei essa corda, viu? Quando criança sempre gostei de nós, dos quadros com todos os tipos de nós do mundo, mas nunca consegui reproduzir nada além do nó cego. É hora de aprender, na marra mesmo. Enrola daqui, aperta de lá, tudo muito seguro.

Ajuda aí embaixo! Pronto. Devolve a corda. Olha esse caderno, olha esse álbum de fotografias. Vejo coisas que tem valor pra mim no meio da bagunça toda. Roubo do sótão alguns de seus tesouros. São meus novamente, alimentarei as minhas próprias traças com eles, ocuparei outros sótãos e caixas velhas. A sacola - outra ferramenta essencial em uma mudança é uma sacola resistente com boas alças - sobe de volta ao sótão. Quem diabos guarda um raio X de 1998? Tem coisas que só quem tem um sótão em casa sabe explicar.

Ouvindo: AC/DC - Shake a Leg