Friday, August 04, 2006

Hora marcada

Era dada a hora. Tava tudo marcado, o doutor tinha acabado de consultar o calendário, não tinha escapatória e o dia era aquele, ponto. Nem mais um mês, nem mais uma hora, nem mais um suspiro. Morreira dali há extatos e precisos 2 meses, no período da tarde, entre as 15h45 e 15h47. Era a única margem que passara a ter na vida, dois minutos, o prazo máximo da variação entre ser e não ser mais coisa alguma. Preocupou-se com a falta de sabedoria para saber o que fazer naquele tempo e o que mais doía era a preocupação com sua filha, alegria única nesses anos de existência. Conhecia seu jeitinho meigo, sensível e alegre e queria aproveitar aqueles momentos conhecendo e aprendendo um pouco mais sobre como é ser maravilhoso.

Decidiu vestir seu pijma e deitar na cama, com um calendário colado na parede e uma jarra d'água no criado mudo. Esperava todos os dias pela visita de sua filha, enquanto tentava bolar planos pra enganar quem o vinha buscar no dia derradeiro. Colocar outro cara na cama e ficar bem quietinho, escondido debaixo dela esperando que não me levassem, que aceitassem o engano e me deixassem quietinho lá. Buscava pelo mundo casos misteriosos de dribles à Morte, sacadas geniais e salvamentos improváveis de moribundos condenados, reunindo-os em um luvro que colocava debaixo do travesseiro. Dizia para a filha que era como uma "programação mental", um arquivo para ser consultado por quem levava seus últimos sonhos para a sua cama.

Sua filha seguia a rotina de visitas, sempre semonstrando um olhar pensativo, de quem sabe dos planos superiores e que faz previsões sobre um futuro que ainda não aocnteceu. E assim acariciava o pai, tentava confortá-lo da dor que estaria por vir, que também não conhecia, mas vivenciava de maneira torturante e crescente com o passar das tardes. Inconscientemente media o corpo do velho, pensava em modelos de caixão e coroas a serem depositadas na memória de seu pai. Cada visita era uma pá de terra em cima do amado. Já o velho perdia-se em seus pensamentos, engolindo quilos de tristeza e ruminando um sorriso que dela tirasse as impressões deixadas pelo doutor. Comunicavam-se pouco, apenas mensagens cifradas espalhadas pelos caminhos e lugares que costumavam se encontrar. Estava condenado: pelo médico, pela filha e por ele mesmo.

Chegado o dia o pai resolveu não abrir os olhos. Esperou que Deus ou o capeta o levassem, ou que mandassem um enviado para cumprir o horário marcado. Eram 15h46, estava na metade do prazo e nem imaginava que horas eram. O vento balançava o calendário, que já estava muito desatualizado praqueles anos de 2009. O tempo não cumpriu sua promessa, nem a promessa do doutor, nem a da filha, e nem a dele. Dizem que ninguém foi ao enterro, apenas um cachorro, um bêbado e o coveiro. Não queria flores, pediu que fossem deixadas na Terra, que precisava muito mais delas do que lá pra onde ia.

Ouvindo: Planet Hemp - A Culpa é de quem

4 comments:

Anonymous said...

te amo, sem mais,

Anonymous said...

a muito que não lia o seu blog, mas hoje explorei os suspiros da sua escritura.

Obrigada.

Beijos

Bigode said...

Que apareça mais vezes, menina.
E nào sei por que vc está agradecendo, mas digo: de nada!

Beijo!

Anonymous said...

o que eu estava procurando, obrigado