Decidi trancar a porta, a festa seria só nossa. Eu, meu amigo, ele e outra atendente, os únicos contemplados com a festa que teria início em breve. Decidi também arrancar o cartaz impresso em a4 que dizia sobre as penas por desacato e/ou desrespeito ao funcionário público, já que o que estava por vir estava longe de ser um desacato. Seria coisa de primeira, digno de TV e estória de ninar passada de geração para geração de funcionário público. Estavamos prestes a virar folclore, causo e norma de conduta apra o funcionalismo. Meu amigo, já no clima, cuidava das persianas e dos fios telefônicos, que eram arrancados das paredes e dos aparelhos. Quem mandou? Quem disse que ele podia ser tão arrogante, cagando regras para todos os lados? Que podia criar prazos inesgotáveis ao seu bel prazer? Inventar necessidades e apontar obstáculos ridículos? Não posso dar encaminhamento antes que o documento chegue, senhor... Que frase mais ridícula. Repete, seu filho da puta, repete pra eu ouvir você falar isso de novo. Meu amigo se ria todo, meio que sem motivo, pois fora atendido como rei. A outra atendente, a que atendeu meu amigo, não tinha culpa alguma. Aliás, tinha culpa por estar lá ao lado dele sem nunca ter cobrado qualquer posição mais decente. Repete, seu filho da puta, eu quero que você repita que não pode dar andamento. Sua pele negra brilhava de suor enquanto eu o prensava na parede. A mulher estava desesperada, mas meu amigo deu conta da situação com um soco na boca. O sangue escorria pela blusa e a mulher se engasgava com a mistura de sangue e dentes que invadia sua garganta. E meu amigo se ria, enquanto ele tremia com a voz e com as pernas, sem coragem de repetir aquilo tudo que eu pedia. Peguei um pouco de sangue da outra atendente e passei em seu rosto, perto do nariz e pedi que repetisse tudo de novo. Agora ele chorava. Toda sua macheza tinha ido embora pela janela, mesmo que essa estivesse fechada. Não tinha mais certeza de tanta coisa, não conseguia me ameçar com requisitos e autenticações. Sabia que sua vida podia acabar ali mesmo, na hora, sem precisar de fotocópias, nem assinaturas e nem ordens superiores. Seu tempo não era mais contado em dias úteis, ali na minha mão ele podia durar mais 2 segundos, duas horas ou dois meses, mas ele nunca saberia qual o prazo em dias úteis. Toda sua tradição de funcionalismo público escorria em suas lágrimas, enquanto apertava seu pescoço e pedia em voz alta para que repetisse que não podia atender meu pedido. Até que ele desistiu de ser o dono da burocarcia, deisitiu de querer me controlar com seus prazos, requisitos e outras encheções. Arregou:
-Eu dou o encaminhamento assim mesmo. Volta para buscar em três dias úteis, senhor?
-Não quero mais.
Soltei seu pescoço, destranquei a porta e saí, sem tirar o olho dos olhos dele, contando pra ele, em silêncio, tudo aquilo que sentia por suas ordens, desmandos e prazos. Seu olhar respondia que estava tudo entendido. Saí para um almoço tranquilo de terça-feira, no mesmo local de todas as terças-feiras. E sempre que passo por lá, vejo ele perambulando pelas imediações da repartição. De cabelos sujos, pouca roupa e a pele negra brilhando de suor, ele grita para o mundo ouvir:
-Três dias úteis, senhor! Três dias úteis!
Ouvindo: AC/DC - Problem Child
O que é “puxa saco”?
10 months ago
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