Eu nunca soube especificar o grau de parentesco que tinha (ou ainda tenho?) com ele. Acho que era tio da minha mãe. Mas tio só porque era casado com uma tia da minha mãe. Nada de sangue entre eu e ele. Nunca soube seu nome, só sabia que ele era o Tio Nico. Italiano, acho, com um sotaque carregado, daqueles que fazem questão de reiterar que não são brasileiros, que têm uma ascendência mais nobre que nós, tupiniquins. Não conheci Nico profundamente, só passei um feriado em sua casa, lá em Pirassununga. Nico tinha umas duas filhas, mas o caso especial era o de seu filho, Sergio.
Conhecido como Serignho, me mostrou, em um dos melhores city tours que já participei, toda aquela cidade que tanto lhe encantava. Passeamos pelo centro entrando em todos os estabelecimentos comerciais, cumprimentando todos os atendentes, donos e fregueses. Orgulhoso, me apresentava como seu “primo mais velho": “Não é a minha cara”? Serginho era querido por todos e por isso ganhamos umas duas ou três cocas durante o passeio, que terminou na casa de uma dessas mulheres que distribuem leite por aí. Acho que andamos umas duas horas, mas para ele, era sempre “25 pras três” em seu relógio novo que fazia questão de mostrar pra todos. Será que pra ele a hora não passava mesmo ou não fazia idéia de como olhar as horas no relógio e dava um migué? Fiquei curioso o tempo todo enquanto ouvia elogios a ele. Soube que era o aluno mais conhecido da APAE, que agora estava ajudando um amigo cadeirante empurrando sua cadeira no caminho até a escola. Todos confirmavam minha impressão sobre a pessoa que Serginho era: na medida de sua loucura, era uma pessoa perfeita.
Nico era um velhinho atarracado, cerca de 1,65m, cabelos brancos, sem muitos dentes e um chapéu de couro que usava no quintal. Fumava fumo de cora, às vezes em um cachimbo, às vezes enrolado na palha. Aposentado, passava o dia a comentar sobre o mundo, sempre reclamando de algo. A única coisa que nunca esqueci eram os comentários sobre seu filho “que não deu certo”: "Se fosse na Rrrrúsia, colocava tudo no paredón e mandava chumbo nesses aleijados, rrrretardados e viados. Lá dava cerrrto, quem não prestava pra nada ia direto pro pardedón.” Fiquei pensando e penso até hoje se o que ele dizia era de fato sentimento ou pura pose. Serginho fingia não ouvir, ou, se ouvia, não ligava. Estava muito ocupado pra esse tipo de coisa. O fim de semana foi passando entre refeições humildes e conversas com “parentes” que nunca mais ia ver. A falta de tempero na comida era um pouco decepcionante e a volta para Franca não poderia esperar muito mais. Despedi-me de todos, mas lembrando-me que, se quisermos, podemos viver pra sempre às 25 pras três, sem pensar mais em nada, só agindo de acordo com nossas vontades. Quem quisesse que ficasse reclamando e criando “soluções” para os “problemas”. Mas pra mim o paredón era uma grande idiotice.
O tempo passa e os filhos ganham filhos, mudam-se para outras cidades, as esposas morrem e todo mundo fica muito ocupado para pensar em um pai reclamão que acabou de ficar viúvo. Mas Serginho nunca saiu de sua casa. Continuou com seus passeios e atividades na APAE, quando se deu conta que tinha sobrado sozinho com Tio Nico, seu pai. Nunca guardou nenhuma mágoa das asneiras que ouvira durante toda a vida e continua, (até hoje?) a cuidar de seu pai, cozinhando, lavando e organizando os horários da medicação. Talvez tentando, silenciosamente, com sua maneira peculiar de viver, mostrar ao pai que talvez estivesse enganado sobre quem merecia qualquer tipo de punição. Pagaria qualquer preço pra saber como Nico se sentia sendo cuidado por um "inútil".
O que é “puxa saco”?
10 months ago
2 comments:
a parte do "não guardou mágoas" eu quero atingir um dia...
Nem gustou, né?
forofofo!
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