-Abre a porta aí!
- Só um minutinho, senhor.
Arranca a remela do olho, passa a mão em cima da cabeça e tira bastante fiapo de coberta do cabelo duro. Abre a porta.
- Polícia. Com licença de revistar a sua casa, meu rapaz.
- Pois não - fala como se não tivesse outra opção além abrir caminho e deixar os quatro homens encapuzados e bem armados adentrarem o barraco de alvenaria na Travessa dos Pombos, nº 32.
Zé Roberto tem 16 anos. É preto, alto e magro. Veste bermudão da Conduta e regata Hurley. Nos pés, chinelo de dedo, com os quais nunca sai do seu barraco. Pra sair, Nike e Puma são suas preferências.
- Trabalha?
- Trabalho sim senhor - fala como se isso não fosse nenhum absurdo. Totalmente normal um pretinho trabalhador de dezesseis anos. Os outros homens vasculham o barraco enquanto o sargento Frias segue na enquete:
- Trabalha com que, rapaz?
- 'trego remédio na farmácia lá embaixo e gravo uns som com a rapazeada do funk aqui em cima
- Tem carteira assinada?
- Tenho não senhor - fala como se isso não fosse novidade para o policial, que nunca para:
- Tem passagem?
- Tenho não senhor, sempre fui trabalhador - fala enquanto o cabo Marinho interrompe a entrevista:
- Sargento, encontramo esse walkman e esse dinheiro do lado da cama do suspeito, senhor.
- É walkman não, senhor, é MP3.
Pau. Um soco na cara. O sangue não escorre. O sargento Frias limpa as costas da mão na calça da farda enquanto esbraveja:
- Cala a boca, moleque, cê acha que eu não sei o que que é isso?
- Desculpa senhor - fala como se fosse preciso pedir desculpas até mesmo por existir.
- É teu issaí? Comprou como issaí? Pode falar, rapaz, cê é do movimento, né não?
- Sou não senhor, sou trabalhador, senhor, nunca fui do crime não senhor.
- E esse dinheiro aí, onde você pegou?
- Tô guardando uma merreca pra gravar uns disco, senhor. O dinheiro é meu - fala como se isso fosse mesmo normal, um pretinho magrelo do morro com 1500 reais guardados em sua cômoda.
- Além de vagabundo é mentiroso, rapá. Vai falar onde você conseguiu esse dinheiro não, rapá?
- Sou trabalhador, senhor.
Pau. Outro soco na cara, esse vai direto na boca e derruba pelo menos três dos principais dentes de Zé Roberto. O cabo Mesquita e o soldado Saad voltam de suas buscas pelos barracos.
- Tem esses par de tênis aqui, senhor.
Pau. O terceiro soco na cara - nesse, Zé Roberto não consegue segurar a onda e cai mole no chão. Cabo Marinho aproveita-se e pisa a cara do neguinho contra o chão de cimento batido.
Aos gritos de "para com isso aí, senhor", "pelamordedeus", "sou trabalhador" - falava isso como se fosse normal que a polícia levasse um suspeito com dignidade - Zé Roberto foi algemado, preso e levado para averiguação.
Faltam apenas 18 mil barracos a serem averiguados - quase todos cheios de neguinhos de bermudão e chinelo. Sargento Frias tem um longo dia de trabalho pela frente.
Ouvindo: Emicida - Vai Ser Rimando
O que é “puxa saco”?
10 months ago