A indisposição é vencida pela vontade de alcançar a Liberdade, a ressaca não iria impedi-lo de fazer a caminhada da República até o bairro japonês. Distraído, não conseguia focar em coisas específicas em meio à bagunça. Balançava a cabeça para um lado, esbarrava o olho em um mendigo que jazia na calçada. A bunda meio coberta, meio à mostra, mas nada que atrapalhasse seu merecido sono. A cabeça pende para outro lado e concorda em prestar mais um pouco de atençâo ao que lhe cerca. A conferida na carteira, um leve toque no bolso de trás da calça, só um pequeno ritual para certificar-se que continuava repelindo mãos maliciosas que insistem em tomar dos outros o que lhes é precioso. Nesse momento a cidade pareceu dividir-se em áreas restritas, dominadas por atividades e atores que dominavam e aproveitavam ao máximo a posse, mesmo que temporária e indesejada por muitos, daquela parte que um dia respirou ares de nobreza. Seguindo pela Barão de Itapetininga, sonhos de emprego estão perambulando pelo calçadão, em forma de homens placa, em agências de emprego a céu aberto, em postes que anunciam vagas para todos os gosotos, necessidades: recepcionistas, vigilantes, pequenos homens engravatados são procurados por escritórios de advocacia, comunicadores com carro próprio têm vagas garantidas no centro da cidade. Os homens placa andam pra lá e pra cá, repetindo mantras indecifráveis, comprando ouro, vendendo documentos, consultas médicas. A cabeça gira sem obedecer ao corpo que pretende andar rápido, em linha reta, sem prestar atenção aos vendedores de crédito, jovens empregados de primeira viagem que pegam-te pela mão e tentar convencer aos homens que usam sapato que os sonhos estão ali pertinho, a juros baixinhos e super condições de ressarcimento da dívida. Como é bom andar de tênis, calças velhas e camiseta, totalmente fora do público alvo, que é caçado pelos vendedores, sempre de cabeça baixa, procurando no povo os sapatos, a cara de pai de família, o olhar sofrido de quem precisa de um amigo que pague suas dívidas. Os vendedores dividem sem problema o seu espaço com os vendedores de DVD, o pesadelo das locadoras, que dão ao homem comum a opção de possuir um filme pagando menos do que é cobrado para tê-lo por um único dia em sua casa. O Viaduto do Chá reserva sua elegância para as mulheres que fazem contao com outra dimensão, escondidas atrás de guardaçóis e sombrinhas, dão privacidade a quem quer saber antes da hora o roteiro de suas vidas. Búzios, cartas, mãos, qualquer outra coisa serve de meio de comunicação entre o passado, o futuro e o presente e para isso, senhoras que acreditam em muitas coisas desembolsam pequenas cotas a troco de informação privilegiada. A Praça da Sé, por mais quadrada e espaçosa que pareça, também está dividida em nichos de trabalho ou da falta do mesmo. Ao fim da Rua Direita estão as ciganas, que preferem vender os serviços de vidência em pé, chamando a clientela com um sincero e grudento aperto de mão. Será que aprenderam a técnica com os promotores das lojas de crédito? Ao lado estão os sapateiros, desalojados de seus endereços, oferecendo engraxadas, meias-solas e trocas dos saltinhos altos que perdem-se em meio aos buracos das calçadas. Homens pregam sua fé, repetitivos e indecifráveis, com seu olhar fugidio, sendo questionados por outros homens que não dividem os mesmos dogmas. Apoiados por irmãos que gritam aleluia. Alheios aos momentos de salvação na Terra, os "perdidos" permanecem sentados nos bancos à esquerda da Catedral, formando famílias temporárias, laços perdidos no meio da confusão paulistana ali são reatados, momentos ou dias intermináveis são dividisos entre amigos que olham para o infinito, numa improvável reunião em torno de merda alguma. ?Um trio de homens que tocam forró tenta a sorte e algumas moedas, com camisas floridas, em verdes gritantes, mas, assim como acontece com a menina-boneca-estátua-viva, as moedas não vêm, não há dinheiro disponível na praça para ser gasto com essas coisas de arte. Mais um homem placa anda pra lá e pra cá, ao lado da igreja, vendendo qualquer coisa que alguém queira comprar, repetindo coisas sobre ouros e dólares. A avenida Liberdade aparece logo após a praça João Mendes, onde pode-se comprar bonitas flores a preços justos, prenunciando um mercado de mulheres de corações vagos, que alugam seu amor em quartos apertados, por hora, por tarefa, por noite, mas que sonham em doá-los um dia para alguém que saiba amar pura e simplesmente, como o verbo intransitivo que é. Piscadela, a mulher tem calças apertadas e um olhar lânguido, um tanto forçado, quem sabe, até, vulgar. Não, ainda não é o serviço que procuro, mas agora sei bem onde procurar por cada coisa naquele centro. Uma senhora atravessa a rua correndo ao meu lado, com passos e aquele sorriso de quem um dia sonhou em ser uma gueixa. A cabeça faz sinal de positivo, o destino está chegando. Enfim, japoneses vendem cogumelos baratos em seus mercadinhos de produtos indecifráveis. Uma bandeja basta por hoje. Uma latinha de chá de leite, iguaria vinda de Hong Kong de sabor agradável, mas que requer uma segunda chance antes de tornar-se tão agradável. Pronto, a caminhada chegara ao fim. Enfim achara o que queria, torcendo para que o centro continue a exisitir daquels jeito, com seus clientes e vendedores para tudo, e para todos.
Ouvindo: Ez3quiel - Requiem
O que é “puxa saco”?
10 months ago