Friday, February 22, 2008

São Paulo e o centro

A indisposição é vencida pela vontade de alcançar a Liberdade, a ressaca não iria impedi-lo de fazer a caminhada da República até o bairro japonês. Distraído, não conseguia focar em coisas específicas em meio à bagunça. Balançava a cabeça para um lado, esbarrava o olho em um mendigo que jazia na calçada. A bunda meio coberta, meio à mostra, mas nada que atrapalhasse seu merecido sono. A cabeça pende para outro lado e concorda em prestar mais um pouco de atençâo ao que lhe cerca. A conferida na carteira, um leve toque no bolso de trás da calça, só um pequeno ritual para certificar-se que continuava repelindo mãos maliciosas que insistem em tomar dos outros o que lhes é precioso. Nesse momento a cidade pareceu dividir-se em áreas restritas, dominadas por atividades e atores que dominavam e aproveitavam ao máximo a posse, mesmo que temporária e indesejada por muitos, daquela parte que um dia respirou ares de nobreza. Seguindo pela Barão de Itapetininga, sonhos de emprego estão perambulando pelo calçadão, em forma de homens placa, em agências de emprego a céu aberto, em postes que anunciam vagas para todos os gosotos, necessidades: recepcionistas, vigilantes, pequenos homens engravatados são procurados por escritórios de advocacia, comunicadores com carro próprio têm vagas garantidas no centro da cidade. Os homens placa andam pra lá e pra cá, repetindo mantras indecifráveis, comprando ouro, vendendo documentos, consultas médicas. A cabeça gira sem obedecer ao corpo que pretende andar rápido, em linha reta, sem prestar atenção aos vendedores de crédito, jovens empregados de primeira viagem que pegam-te pela mão e tentar convencer aos homens que usam sapato que os sonhos estão ali pertinho, a juros baixinhos e super condições de ressarcimento da dívida. Como é bom andar de tênis, calças velhas e camiseta, totalmente fora do público alvo, que é caçado pelos vendedores, sempre de cabeça baixa, procurando no povo os sapatos, a cara de pai de família, o olhar sofrido de quem precisa de um amigo que pague suas dívidas. Os vendedores dividem sem problema o seu espaço com os vendedores de DVD, o pesadelo das locadoras, que dão ao homem comum a opção de possuir um filme pagando menos do que é cobrado para tê-lo por um único dia em sua casa. O Viaduto do Chá reserva sua elegância para as mulheres que fazem contao com outra dimensão, escondidas atrás de guardaçóis e sombrinhas, dão privacidade a quem quer saber antes da hora o roteiro de suas vidas. Búzios, cartas, mãos, qualquer outra coisa serve de meio de comunicação entre o passado, o futuro e o presente e para isso, senhoras que acreditam em muitas coisas desembolsam pequenas cotas a troco de informação privilegiada. A Praça da Sé, por mais quadrada e espaçosa que pareça, também está dividida em nichos de trabalho ou da falta do mesmo. Ao fim da Rua Direita estão as ciganas, que preferem vender os serviços de vidência em pé, chamando a clientela com um sincero e grudento aperto de mão. Será que aprenderam a técnica com os promotores das lojas de crédito? Ao lado estão os sapateiros, desalojados de seus endereços, oferecendo engraxadas, meias-solas e trocas dos saltinhos altos que perdem-se em meio aos buracos das calçadas. Homens pregam sua fé, repetitivos e indecifráveis, com seu olhar fugidio, sendo questionados por outros homens que não dividem os mesmos dogmas. Apoiados por irmãos que gritam aleluia. Alheios aos momentos de salvação na Terra, os "perdidos" permanecem sentados nos bancos à esquerda da Catedral, formando famílias temporárias, laços perdidos no meio da confusão paulistana ali são reatados, momentos ou dias intermináveis são dividisos entre amigos que olham para o infinito, numa improvável reunião em torno de merda alguma. ?Um trio de homens que tocam forró tenta a sorte e algumas moedas, com camisas floridas, em verdes gritantes, mas, assim como acontece com a menina-boneca-estátua-viva, as moedas não vêm, não há dinheiro disponível na praça para ser gasto com essas coisas de arte. Mais um homem placa anda pra lá e pra cá, ao lado da igreja, vendendo qualquer coisa que alguém queira comprar, repetindo coisas sobre ouros e dólares. A avenida Liberdade aparece logo após a praça João Mendes, onde pode-se comprar bonitas flores a preços justos, prenunciando um mercado de mulheres de corações vagos, que alugam seu amor em quartos apertados, por hora, por tarefa, por noite, mas que sonham em doá-los um dia para alguém que saiba amar pura e simplesmente, como o verbo intransitivo que é. Piscadela, a mulher tem calças apertadas e um olhar lânguido, um tanto forçado, quem sabe, até, vulgar. Não, ainda não é o serviço que procuro, mas agora sei bem onde procurar por cada coisa naquele centro. Uma senhora atravessa a rua correndo ao meu lado, com passos e aquele sorriso de quem um dia sonhou em ser uma gueixa. A cabeça faz sinal de positivo, o destino está chegando. Enfim, japoneses vendem cogumelos baratos em seus mercadinhos de produtos indecifráveis. Uma bandeja basta por hoje. Uma latinha de chá de leite, iguaria vinda de Hong Kong de sabor agradável, mas que requer uma segunda chance antes de tornar-se tão agradável. Pronto, a caminhada chegara ao fim. Enfim achara o que queria, torcendo para que o centro continue a exisitir daquels jeito, com seus clientes e vendedores para tudo, e para todos.

Ouvindo: Ez3quiel - Requiem

Monday, February 18, 2008

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Achava que nunca teria dificuldades para escrever sobre qualquer coisa que fosse, ainda mais escrevendo assim, desse jeito, um jogado de palavras na tela, sem pensar muito na palavra que vem em seguida, sem saber se o que vem escrito antes está grafado corretamente, sem prever o final de algum personagem de antemão, fazendo disso tudo um exercício de fluxo de pensamentos a serem registrados e publicados para quem quiser ver, ler ou passar adiante.

Acordara naquela dia disposto a registrar tudo novamente, num vômito de palavras que falavam sobre sensações, histórias e personagens mal digeridos durante os tempos que passara sem escrever. Sentara-se ao posto de escriba, disperso por janelas laranjas que piscavam em sua barra de ferramentas. Queria contar sobre o cinema, as aulas que tivera com os filmes de catálogo assistidos com atraso. Queria passar para quem quisesse ler as sensações que tivera ao ver o pessoal de Dogville. Descrever com exatidão os paralelos que traçara com a sua vida, com seus amigos suas famílias. Criar para seus leitores uma Dogville encravada no interior de São Paulo, de onde pessoas amedrontadas haviam mandado-no embora há anos atrás. Desejava imensamente transmitir o choque ao ver pessoas conhecidas dentro da tela de TV atuando em Requiem para um Sonho.

Deixara de se sentir tão especial, levara fortes tapas na cara ao ver que coisas que acreditava ser ou viver eram tão comuns que hoje não passam de roteiros de filmes bem vendidos. E o problema é que nada saía para a tela do PC, o pensamento se confundia com outras histórias, outros capítulos que teriam de ser contados separadamente, mas que, em sua cabeça, eram todos conectados, causais e consequentes. Nada saía que valesse a pena ser contado. Resolveu parar o trabalho e voltar para a observação.

Tamborilava com os dedos na mesa, tentando fazer com que aquela corrente de palavras voltasse à sua mente. Não vinha, a solução era essa e não tinha mais volta. Faria como os diretores de cinema fizeram com ele durante todo o fim de semana. Decidir que naquela hora toda a história chegaria ao fim, quer o espectador esperasse, quer não. Seria só colocar um ponto final, um derradeiro, mas que viesse após uma frase que desse aquele efeito de fim. Sabe quando o homem sai andando pelo parque, a câmara afsta-se do personagem e sobem os créditos? Ou quando os dois mocinhos libertários são assassinados sem motivo por dois caipiras desconhecidos? Aumenta atrilha sonora, sobem os créditos. Mas não seria naquele dia. O tempo de escrita já se tornava um recorde. A contagosto, aperta o botão do mouse no botão que tornava o texto irreversível. Uma breve visualização, efêmera como o que ali ficara registrado. Gira a cadeira. Deixa o computador para trás, sem olhar para trás. Caminha em direção ao quarto. Sobre a trilha sonora. Sem créditos.

Ouvindo: Jackson do Pandeiro - Chiclete com Banana