João acordava cedinho todo dia, igual muitas crianças que se vêem por aí. Mas não acordava para ir para a escola, não arrumava seu material nem dua lancheira. Com 7 anos de idade, levantava junto com o sol, ganahva um bom dia irritado de sua mãe, que logo cobrava seu trabalho. Pegava sua mochila e caminhava de barriga vazia até o barraco do Cidão, onde acabava de arrumar seu material de trabalho: pó de 5, pó de 10, umas maconhas e um pouco de crack. Precisava vender pelo menos 100 contos por dia, senão a bronca era feia e dobrada: do Cidão e de Dona Dirce, que esperava pelo filho todos os dias, embalada pela programação da TV.
De barriga vazia, João descia o morro todos os dias cantarolando raps feitos ali na quebrada mesmo, relembrando de estórias contadas pelos seus companheiros de trabalho, tentando esquecer as duras dos "homi" e as surras de sua mãe. Chegava no asfalto lá pelas 7 e meia, todos os dias, e logo encarava a freguesia mais assídua:
-Tem pó de 5 aí, Joãozim?
-Tem sim. Quantos cê vai levar hoje?
-Um só, tá achando que fiquei milionário, muleque?
João vendia e continuava andando pelas imediações da favela, sempre marcando em alguns lugares estratégicos. Às oito sempre vinha aquela madame, lá pelas 9 os tiozinhos que trabalhavam na construção levavam boa parte das pedras e da maconha. Eram seus melhores amigos na atualidade. Não que pudesse dizer que eram seus amigos de verdade, mas eram os únicos que, além de garantirem o sustento de Dona Dirce, ainda pagavam Tubaína e punham um mesclado pro João na hora do almoço. Pouco tempo depois era a vez da mulecada do colégio ali do lado, que sempre fazia uma parada antes da praia.
-E aí João, tá servindo hoje?
Sempre solícito, ele respondia:
-Claro, tô aqui todo dia. Vai levar o que?
-O de sempre, né mané!
João passou duas maconhas e um pó de dez e antes que acabasse de contar a grana, os playboys já tinham sumido pelo bairro, caminhando empolgados em direção a praia. A cota de João estava acabando, agora só faltava aparecer mais uns malucos do bairro para levar alguns papelotes de 10 e duas pedras que faltavam para fechar o dia. E como sempre, todos apareceram e seu dia de trabalho tinha terminado. Quase. João subia o morro agora sem tanto "peso" nas costas, cem reais no bolso e seus sonhos de criança voando em cima de sua cabeça. Passava perto das outras crianças e brincava por alguns segundos, chutava uma bola que vinha em sua direção, mas nunca podia parar e brincar, sem se preocupar com Cidão ou Dona Dirce. Não tinha tempo para essas coisas de criança, e continuava subindo o morro até o barraco de seu patrão.
-Cidão!
-Entra aí, Joãozinho! Como foi hoje?
-Foi legal!
-Acabou tudo? Cadê a grana?
-Tá aí...
João entregava, como todos os dias entregava, os cem reais da cota diária de sua venda. Juntando todos os aviõezinhos, Cidão chegava a pegar 1500 contos só da mão dos moleques. Tirando as vendas que fazia pessoalmente, mais as encomendas que mandava pros bairros, Cidão estava ficando rico. E João continuava pobre:
-Tá aqui!
Cidão estendeu uma nota de R$ 5,00, como de costume
-Valeu hein!
João subia mais uma vez para sua casa, com a sensação de dever cumprido: Cidão garantia seus lucros e sua mãe garantia sua miséria. Exausto, o menono tinha como companhia seu travesseiro velho, o qual abraçava e o embalava em seus sonhos: bombeiro, lutador de sumô, jogador de futebol, qualquer coisa, menos aviãozinho passava pela sua cabeça. Mas logo o cansaço e a leseira do mesclado mandavam embora seus sonhos e um vazio preto tomava conta de sua cabeça. Hora de acordar.
João acorda mais uma vez junto com o sol e de barriga vazia desce o morro. Pega sua cota, arruma a mochila e desce para o asfalto. Os fregueses comparecem na mesma ordem de sempre, como se fosse combinado. A madame, os tiozinhos da obra e os playboys. Mas dessa vez um dos moleques da escola trazia algo que nunca tinha visto, quanto mais pegado nas mãos. Era um livro infantil, cheio de animais e arco-íris, tudo muito sonhado e colorido.
-Deixa eu ver?
-Tira a mão daí, Joãozinho. Cê nem sabe ler!
A mulecada ria nervosa à espera do combustível para a tarde.
-Eu quero só olhar!
-Não pode, você vai sujar.
-Não vou não...
-Vai!
-Pô corta essa, Reinaldo, deixa o moleque pegar o livro.
-Deixo não. Se você quiser eu vendo.
-Quanto?
-O de sempre, né mané!
João nem pensou muito no assunto, logo serviu as duas maconhas e o pó de 10 pros playboys. Queria que eles sumissem mais rápido ainda pelo bairro, enquanto folheava apressado as páginas coloridas e sonhadas. Tentava decifrar o que estava escrito, mas podia também imaginar toda a magia contida naquelas páginas. Gritava, ria e esquecia de seu mundo, no livro ninguém era Cidão nem Dona Dirce. Esquecia do tempo, esquecia dos fregueses, pensava em sua vida e em sua alegria. Ao pôr do sol resolveu acordar e subir o morro. A mochila agora era pesada, peso dos sonhos presos em páginas coloridas.
-Cidão!
-Entra, João!
-.........
-.........
-E a grana, moleque?
-Tá aí, Cidão!
-Tá o caraio. Tem 80 conto aqui. Não sobrou nada na sua mochila?
-É que...
-É o que caraio?
João abriu sua mochila e estendeu o livro. Esperava que Cidão gostasse, entendesse a magia que aquilo lhe proporcionava. Queria que o traficante esquecesse pelo menos por um dia da grana, que sua mãe se levantasse do sofá e arrumasse algo decente pra fazer. Queria que aquele livro resolvesse o mundo, enchendo-o de sonhos e criancice. Queria que aquilo valessemuito mais que umas paradas de droga ou vinte reais ou qualquer coisa. Queria que todos sonhassem como sonhou ao folhear o livro. Apenas queria... Mas Cidão não quis saber. Sacou seu .38 e, do auge de sua loucura, disparou bem na cara do moleque, que caiu ao chão, abraçado com seu livro e com seus sonhos.
-Moleque filho da puta!
Ouvindo: Inocentes - Medo de Morrer (versão Ratos de Porão)