E foi que eu abri a porta enquanto as crianças gritavam: "Ele chegou, ele chegou!". De camisa amarela, calça e meias azuis arriadas, lá estava ele, RC.
- Soube que mandaram uma carta pra você em meu nome...
-Pois é, o nome é o mesmo, mas não foi pra você não.
RC fez uma cara de desentendido, mas um pouco blasé também. Parecia nào acreditar que eu não dava bola pra sua importância. O suor escorria em sua testa, descendo da careca reluzente, sinal que tinha vindo correndo.
- Veio correndo, Roberto?
- Pois é, tava meio parado e resolvi agitar um pouco nas férias. Mas como assim, não era minha a carta? Meu empresário falou que tava tudo acertado, que eu podia vir aqui falar com você, você precisava de uns conselhos.
- Mas a carta não era pra você, era pro "Rei".
- Exatamente, Roberto Carlos, o Rei do Futebol! Eu!
Saí de controle por alguns minutos, rindo descompassadamente. As crianças não entendiam, estavam fascinadas pela presença e brincavam pelo chão desfiando a meia do pobre jogador. Depois de tomar uns doze copos d'água, voltei ao sério e tive que explicar:
-Até entendo que você seja o Rei, Roberto. Mas a carta que eu escrevi foi para o Rei Roberto Carlos, o verdadeiro rei da música.
-Ah... Acho que eu vou nessa então...
Dessa vez o descontentamento era mais nítido e não dava para segurar o ar blasé. Roberto Carlos estava chateado com a confusão e pela primeira vez em minha vida, vi nele uma expressão que era movida por sentimentos. Pedi que esperasse um pouco mais, pois precisava falar sobre coisas 'serias com ele. Enquanto tentava explicar o assunto, Roberto Carlos permanecia abaixado ajeitando seu meião, reclamando em resmungos sobre a malcriação das crianças. Ouvia minhas explicações de cabeça baixa, sem responder sobre nada. A aptroa chega na sala e grita: "É o Rei, é ele, ele chegou!".
Coloquei a cabeça na janela e vi ao longe um homem em um cavalo branco, vestindo terno e jogando rosas pelo caminho. Beijava-as, como em uma dedicatória, e jogava-as ao chão para a platéia que não tinha ido ao show. Aproximava-se lentamente de minha casa, enquanto eu pensava sobre o que fazer para receber dois reis em meu lar. Roberto Carlos desceu de seu cavalo e foi logo entrando, amigos que somos, e pedindo seu copo de água com limão. Café ele não tomava, quanto mais cerveja e coisas do tipo. Lembrei que o outro Roberto não havia sido recebido como devia e pedi que viesse uma dose de qualquer coisa forte pra ele também.
- Você por aqui? Pára de ajeitar essa meia e olha pra mim. Como você tá?
- Eu não consigo. Tô com vergonha. Mas eu tô bem, Roberto. É uma honra ver o senhor por aqui.
Continuaram com um papo ameno até que o verdadeiro Rei zangou-se com as fugas de RC. Disse que Rei do futebol é o caramba: "Pô bixo, depois do Pelé não tem pra ninguém. Muito menos pra você." Parecia que o Rei tinha lido meus pensamentos e o jogadorzinho estva agora dispensado. Mas pegou o copo cheio de pinga com limão e resolveu ficar, agora sentado na sala jogando W11 com as crinças.
Acontece que o Rei, Roberto Carlos, cantor e compositor, o verdadeiro Rei de verdade, tinha ido em casa para uma visita quase que comum. Mas ele queria mesmo é pegar a resposta da carta que ele tinha me mandado, dizendo estar triste com meu atraso. Roberto se dizia muito sozinho lá em cachoeiro do Itapemerim e resolveu encarar alguns dias no lombo de seu cavalo branco só pra saber o que eu estava pensando do assunto. Conversei com ele durante longas horas, expliquei toda a confusã que se passara em minah cabeça, ams disse que agora estava tudo resolvido. E já que ele já tinha ouvido, melhor seria escrever uma carta pra ela e dizer tudo o que tinha contado para o Rei. Peguei um rolo de papel para impressora matricial e comecei o texto dizendo tudo aquilo que era preciso dizer, o que meu coração mandava, etc. Horas depois estava acabdo, mas bem na hora em que fechava o correio. Roberto Carlos continuava no videogame e o Rei estava voltando de um cochilo. Expliquei que precisava entregar a carta no dia, senão não tinha mais volta. Vai que ela arruma outra coisa melhor, uma diversão, um amigo, um noivo, um namorado, marido, filhos, outra mulher, sei lá. Não podia perder tempo. Tinha que ser naquela hora, sem mais um minuto de espera. Mas como chegar a tempo? Meu carro não existia, Roberto Carlos veio correndo e o cavalo do Rei recuperava-se do esforço da viagem. O Rei prontificou-se a ir entregar no correio, mas, por algum motivo que hoje não consigo pinçar em minha memória, não confiei em sua agilidade. Era a hora de Roberto Carlos provar que servia para alguma coisa. Empolgado com meu olhar desconfiado para o Rei, Roberto dava corridinhas sem sair do lugar, um aquecimento frenético que marcou sua carreira.
-Você vai lá pra mim então?
- Vou. Deixa eu só arrumar a meia...
E ele está morando comigo agora. Desde que largou o videogame e voltou a mexer na meia, Roberto Carlos não saiu mais do lugar. Bebe umas coisas, come outras poucas, mas segue ajeitando o meião. Atendo seu celular várias vezes no dia, recebendo propostas que combinamos não comentar. Sobre sua volta aos gramados, nunca chegou a responder.
A carta? A carta chegou com um pouco de atraso, já que o Rei foi caminhando até o correio...
Ouvindo: Mutantes - A Hora e a vez do cabelo crescer